Um novo embate global está em curso, silencioso, mas com impacto direto sobre indústrias, políticas públicas e hábitos culturais. De um lado, o lobby antiálcool, representado por organismos internacionais, entidades médicas e grupos de saúde pública, que buscam endurecer a regulação do consumo de bebidas. De outro, o lobby do vinho, ou o que poderíamos chamar de sua ala “moderada”, que tenta se diferenciar das demais bebidas e reivindicar um estatuto cultural próprio. Essa é a “Guerra do Álcool”, uma disputa que envolve saúde, economia, regulação e imagem, e que deve redefinir o modo como o mundo, inclusive o Brasil, enxerga o consumo de bebidas alcoólicas.
Em setembro de 2025, a Organização Mundial da Saúde (OMS) endureceu o tom: “não há nível seguro de consumo de álcool”, afirmou a instituição em relatório que propõe medidas de restrição fiscal, publicitária e comercial a todas as bebidas alcoólicas. A ideia é criar um acordo global semelhante ao da Convenção-Quadro do Tabaco, estabelecendo parâmetros universais de controle.
A reação da indústria foi imediata. Segundo reportagem da Reuters, associações e empresas de vários países, de fabricantes de tequila no México a multinacionais de cerveja e destilados, iniciaram uma ofensiva diplomática e jurídica para suavizar as propostas da ONU. Em versões preliminares de documentos, expressões como “implementar medidas” foram substituídas por “considerar medidas”, um recuo estratégico que revela a força de negociação do setor frente ao lobby antiálcool nas instâncias multilaterais.
O portal The Drinks Business também detalhou como o setor vem buscando reposicionar a narrativa, destacando o “consumo responsável” e o impacto econômico das bebidas, que movimentam globalmente mais de US$ 1,5 trilhão por ano e empregam milhões de pessoas. Trata-se de um argumento clássico: tributar ou restringir demais o álcool não reduziria necessariamente o consumo, mas deslocaria o mercado para a informalidade, afetando arrecadação e empregos.
Por trás das boas intenções, o jogo é de poder. O lobby antiálcool quer conter externalidades, como custos hospitalares, acidentes e doenças crônicas. A indústria, proteger margens e evitar estigmas comparáveis aos do tabaco.
O lobby do vinho e sua estratégia de distinção
Embora também faça parte do universo alcoólico, o setor de vinhos tenta há anos se desvincular da “bebida genérica”. Seu discurso é outro: o vinho é cultura, agricultura, turismo e sociabilidade, não um produto de massa. Essa diferenciação simbólica tem consequências práticas: em vários países, o vinho busca tratamento tributário e regulatório específico, sob o argumento de que políticas restritivas concebidas para destilados e cervejas prejudicam vinícolas familiares, produtores locais e economias regionais.
Na França, por exemplo, a associação Vin et Société atua há décadas como principal voz institucional do setor. Quando o governo discute políticas antiálcool, o lobby vinícola se apoia em parlamentares de regiões produtoras e na narrativa de “patrimônio nacional”. Recentemente, até partidos políticos passaram a incorporar a defesa do vinho em seus discursos sobre “identidade francesa”.
Em outros países, a tática é científica. Na Alemanha, investigações expuseram como grupos vinícolas financiaram pesquisas para enfatizar supostos benefícios à saúde do consumo moderado. A ideia é simples: transformar o vinho em exceção. Se o álcool é problema, o vinho seria “parte da solução”, um alimento civilizatório, ligado ao convívio e à dieta mediterrânea.
O problema é que, no campo científico, o consenso sobre benefícios fisiológicos do vinho é cada vez mais questionado. O que sobra, porém, é o capital simbólico: o vinho não é apenas álcool, é cultura. E esse argumento é o trunfo central do lobby vinícola.
Uma guerra de narrativas, não de copos
O confronto entre o lobby antiálcool e o lobby do vinho não acontece nas prateleiras, mas nos bastidores legislativos, nas conferências internacionais e nos relatórios técnicos. Trata-se de uma disputa sobre quem dita as regras do mercado global e quem sobrevive a elas.
O lobby antiálcool é poderoso, amplo, articulado e tecnicamente bem preparado. Atua por meio de organismos multilaterais, fundações filantrópicas, centros de pesquisa e agências reguladoras. Defende uma abordagem epidemiológica do tema, propondo restrições universais, aumento de impostos e mensagens de advertência mais severas. Seu objetivo declarado é reduzir o consumo global de álcool em 20% até 2030.
O lobby do vinho, menor e mais fragmentado, aposta na diferenciação simbólica e regional. Apoia-se em governos locais, apela à proteção de denominações de origem e tenta influenciar a opinião pública com discursos de moderação e tradição. Seu poder não está na escala, mas na legitimidade cultural.
Impactos econômicos e regulatórios
As consequências dessa guerra vão muito além da saúde. Políticas mais duras podem elevar a carga tributária sobre bebidas alcoólicas, restringir publicidade, inclusive digital, limitar horários de venda e impor alertas em rótulos. Isso afeta toda a cadeia produtiva, da agricultura à hospitalidade.
Para países produtores de vinho, há o risco de perda de competitividade e impacto em regiões rurais que dependem do enoturismo. Já para países como o Brasil, que combinam produção nacional com importação significativa, o desafio é calibrar o equilíbrio entre arrecadação, saúde e livre mercado.
Há também implicações de imagem. Se o lobby antiálcool conseguir equiparar o vinho a outras bebidas alcoólicas, marcas premium e produtores regionais podem perder um dos pilares de sua narrativa: o vínculo com cultura, gastronomia e estilo de vida saudável. Em termos de negócios, isso significa rever campanhas, embalagens, parcerias e até políticas de exportação.
Não por acaso, associações vinícolas europeias e latino-americanas vêm tentando internacionalizar o debate, buscando um “reconhecimento cultural” do vinho em organismos multilaterais, à semelhança do que ocorreu com o pão, o azeite e a dieta mediterrânea.
O vinho além da saúde: o capital social da taça
Enquanto o lobby antiálcool fala em risco, o setor vinícola insiste em vínculo. E há algo de verdade nisso. Mais do que uma bebida, o vinho opera como instrumento de sociabilidade, cultura e identidade econômica. Ele conecta pessoas, impulsiona o turismo, fortalece comunidades e estimula o consumo consciente.
Em termos de política pública, essa dimensão social importa. O vinho carrega um ecossistema econômico completo — agricultura, indústria, hospitalidade, conhecimento técnico e experiência cultural. É uma das poucas cadeias produtivas em que a moderação é sinônimo de valor agregado.
A taça, nesse sentido, é mais do que o copo: é símbolo de uma relação civilizada com o prazer, o tempo e o outro. Não é o álcool pela embriaguez, mas o vinho pela convivência.
Num mundo que tenta conciliar liberdade de mercado, responsabilidade social e saúde pública, esse pode ser o argumento mais eficaz — e mais humano — que o vinho tem a oferecer.

