Mudanças no papel do dólar como moeda padrão do comércio internacional, guerras no Oriente Médio, oscilações de humor do mercado, acordo entre Mercosul e União Europeia… o mundo vem se transformando cada dia mais em todas as esferas, e isso deve ser analisado de perto por quem atua no mercado brasileiro. O BRAZIL ECONOMY conversou com exclusividade com o professor de Relações Internacionais da ESPM, Gunther Rudzit, sobre estes e outros assuntos. Ex-conselheiro da Embaixada Brasileira em Washington e da missão do Brasil na OEA, Gunther analisa como o Brasil se posiciona atualmente em meio a essa turbulência global, com potencial de afetar nossa diplomacia e os negócios.
O dólar sempre foi visto como uma moeda segura. Estaríamos chegando ao fim da supremacia do dólar e à ascensão de outras moedas, como o yuan? Como o real se posiciona nesse cenário?
A força do dólar se dá pela sua convertibilidade, pela previsibilidade de que o governo americano não vai controlá-lo e pela quantidade de espécie em circulação na economia mundial. Diante disso, o uso da moeda como instrumento político nos últimos anos coloca medo em outros governos, que veem o Ocidente como uma ameaça, especialmente a China, por poderem sofrer com essa dependência financeira do dólar. Contudo, nenhuma outra moeda tem as mesmas condições do dólar: livre convertibilidade, confiabilidade e ampla circulação. Por isso, é difícil substituí-lo, o que explica o aumento do ouro nas reservas internacionais de tantos Estados. Vejo, além disso, uma regionalização do uso de outras moedas, por exemplo, países que comercializam muito com a China aumentarem suas reservas em yuan, sem necessariamente abandonar o dólar. Já o real não vejo com capacidade de exercer um papel internacional, já que a economia brasileira, especialmente as contas públicas do governo federal, não é estável.
Recentemente, o governo brasileiro anunciou o aumento de investimentos franceses no Brasil. Ao mesmo tempo, Lula vem se aproximando cada vez mais da China. Esses movimentos seriam uma contraposição às diferenças ideológicas entre Brasil e EUA?
Os investimentos franceses aumentam porque eles precisam de mercados onde seus produtos ainda sejam competitivos, e como alternativa ao mercado russo. Já a aproximação com a China é natural, por serem duas economias complementares, e Washington sabe que não há como impedir isso. Mas, na questão política, medidas ainda podem ser tomadas, ou mesmo se pode esperar pela alternância de poder em Brasília.
O governo brasileiro tem diferenças ideológicas claras com o governo de Donald Trump. O senhor acredita que isso afasta ou pode afastar investidores da economia brasileira?
Na conjuntura atual, não vejo motivos para afastar investimentos que venham aproveitar o mercado interno. Afinal, o Brasil não é uma plataforma exportadora, no máximo, alguns setores exportam para a América do Sul. Vejo muito mais empresas mantendo suas posições, e empresas chinesas chegando para tentar escapar das sanções e ganhar mercado, já que a economia chinesa está debilitada e com excedente de produção.
A possibilidade de inflação nos EUA diante das instabilidades globais faria com que os juros locais subissem. Como isso impactaria a inflação no Brasil?
Se os juros nos EUA subirem, isso significa que o patamar mínimo dos juros no Brasil e no mundo também subiria. Assim, não afetaria a inflação diretamente aqui, mas sim o quanto o Banco Central poderá reduzir os juros quando a inflação baixar. Esse novo patamar mais alto de juros no mundo afetará a economia global, mas não a inflação global.
Sabemos que qualquer instabilidade no Oriente Médio pode alterar o preço do petróleo no mundo e pressionar a inflação no Brasil, especialmente no valor da gasolina. Qual outro risco o senhor enxerga para a economia brasileira, ocasionado pelas guerras no Oriente Médio?
Outro risco seria a desestruturação das economias locais, com menor consumo de produtos brasileiros, embora não deixem de consumir completamente, já que exportamos, fundamentalmente, commodities alimentares. Outro fator é a possível diminuição dos investimentos no Brasil, dependendo da gravidade do conflito.
Alguns movimentos antissionistas defendem o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com Israel. O senhor vê possibilidade de isso acontecer? Como impactaria a economia brasileira?
Não acho que o rompimento diplomático seja a solução, já que dependemos, em alguns setores, da tecnologia israelense como, por exemplo, no setor militar. Só para citar um caso: o quanto dependemos da Elbit. Além disso, como uma democracia, é muito provável que ocorra uma mudança de poder em Israel, e, com isso, voltarmos a ter relações diplomáticas plenas mais rapidamente, sem termos passado por um rompimento.
A Europa vem se militarizando de maneira inédita desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por meio da Otan. O senhor acha que o Brasil deveria aumentar os gastos na área militar para seguir a mesma tendência?
Precisamos, sim, aumentar os gastos, pois a situação atual das nossas Forças Armadas é pior que precária. Não conseguiríamos sustentar um combate por poucas horas por pura falta de munição de todos os tipos. Isso é importante porque o mundo entrou em uma nova fase, na qual o uso da força e a anexação de territórios voltaram a ser uma realidade. Basta ver que a Venezuela está se preparando para anexar a região de Essequibo. Contudo, é necessário também realizar uma profunda reforma na estrutura das nossas Forças Armadas, com a criação de um Comando Conjunto que faça todo o planejamento da força necessária, e não mantermos cada Força com seu planejamento individual, uma prática anterior à Segunda Guerra Mundial.
O acordo entre Mercosul e União Europeia segue como um entrave para o desenvolvimento das relações entre os países envolvidos. Quais as perspectivas que o senhor enxerga para que esse acordo seja finalmente selado?
Não tenho muita esperança de que esse acordo venha a ser assinado. Primeiro, o protecionismo agrícola francês é grande, e está aumentando em outros países europeus. Segundo, os europeus sabem que o setor agrícola é estratégico em caso de guerra, e a perspectiva de conflito voltou a ser uma realidade. Terceiro, a Era do livre-comércio acabou. Voltamos a ver o intervencionismo estatal em setores considerados estratégicos e, para os europeus, a agricultura é um deles. Quarto, com o governo brasileiro se aproximando tanto da China e da Rússia, cresce a percepção de que não somos confiáveis. Isso se intensificou após as críticas do governo brasileiro a Israel por atacar o Irã, críticas que os europeus não fizeram. Portanto, não sou muito otimista quanto ao futuro desse acordo. O timing hoje é outro.