O Brasil possui um dos sistemas de franquias mais dinâmicos do mundo, responsável por movimentar bilhões de reais e gerar oportunidades para empreendedores de todos os tamanhos, além de empregos para milhares de pessoas. Segundo a Associação Brasileira de Franchising (ABF), o mercado de franquias brasileiro registrou um faturamento de R$ 273 bilhões em 2024, representando um crescimento nominal de 13,5% em relação ao ano anterior.
Mas as recentes notícias envolvendo a Cacau Show revelam um ponto que muitos percebem, mas poucos compreendem plenamente: contratos são apenas o ponto de partida. O sucesso de relacionamentos comerciais dessa natureza reside em como as relações são cuidadas — na escuta intencional, na mediação, na ponderação e na adaptação. Em outras palavras, a clareza da estratégia e o alinhamento constante de expectativas são tão importantes quanto qualquer cláusula jurídica.
A satisfação do franqueado, às vezes, é vista apenas como um número de pesquisa, e não é monitorada como um real indicador de saúde e sustentabilidade do negócio. Ela envolve convergência de valores, percepção de justiça, suporte operacional e, acima de tudo, que o franqueado seja visto como parceiro estratégico — não apenas como um ponto no mapa, um simples executor, o elo final da cadeia. Afinal, em um sistema de franquias, o franqueado é o primeiro cliente, o elo vital em um modelo B2B2C. Se a primeira corrente desse elo perde força, todo o sistema se coloca em risco — inclusive o atendimento ao cliente final. Porque, para o consumidor, a loja é a marca. É uma verdadeira simbiose.
No Brasil, a gestão da satisfação de clientes ainda é realizada de forma não sistêmica e descontínua. Muitas empresas apostam em modelos de expansão acelerados, mas esquecem que crescer a qualquer custo não significa prosperar. É como deixar problemas estruturais sem solução: com o tempo, as falhas de suporte, a falta de comunicação e as decisões unilaterais comprometem não apenas a reputação da marca, mas a sustentabilidade da empresa. Crescer com qualidade, investindo em sinergia de valores, visão futura e expectativas alinhadas, exige relacionamento e diálogo — e isso é muito mais valioso no longo prazo.
A Teoria Relacional dos Contratos, criada por Ian Macneil, traz um olhar essencial para esse contexto. Ela propõe que contratos não são apenas papéis e cláusulas, mas relações vivas e dinâmicas, cheias de expectativas e moldadas por contextos sociais e emocionais. Isso faz toda a diferença no franchising, onde as relações são de longo prazo e as condições de mercado mudam constantemente. Confiança, transparência, flexibilidade, cooperação e adaptação são elementos centrais para manter a “tensão da corda” no ponto certo: firme o bastante para dar suporte, mas flexível para evitar rompimentos.
Esse equilíbrio exige governança relacional. Franqueados não são apenas operadores de ponto de venda; é preciso reconhecer que são parceiros estratégicos, que deveriam ter voz legítima. Isso implica um esforço contínuo de diálogo, escuta ativa e transparência — não só quando surgem problemas ou divergências, mas como prática regular do negócio. Uma governança relacional forte fortalece a marca, reduz conflitos e prepara a empresa e seus clientes para lidar com as incertezas do mercado.
Conflitos, aliás, por vezes são inevitáveis em qualquer sistema de parcerias de longo prazo. Mas a forma como são enfrentados faz toda a diferença. Em vez de litígios desgastantes, a mediação surge como uma ferramenta poderosa para reconstruir pontes. Mais do que resolver um problema pontual, ela cria um espaço seguro para que franqueador e franqueado expressem suas percepções, encontrem soluções em conjunto e previnam divergências futuras. A mediação valoriza a voz do franqueado e reforça a ideia de que a rede é um ecossistema vivo, onde todos têm responsabilidades e interesses legítimos.
O momento da Cacau Show, marcado por denúncias de práticas abusivas e insatisfação dos franqueados, expõe o risco de ignorar esses princípios — o famoso equilíbrio entre as partes interessadas. Quando franqueados reclamam de falta de suporte, de produtos enviados com prazos curtos ou de cobranças unilaterais, não se trata apenas de questões comerciais. Trata-se de um sintoma de uma relação que perdeu o equilíbrio, que deixou de lado a escuta e o alinhamento de expectativas. E, como em toda relação de longo prazo, essas rachaduras se tornam visíveis — e custosas.
Por isso, medir e acompanhar a satisfação de clientes não é agenda acessória; é mandatória para todos os líderes empresariais e parte da cartilha da boa governança. Envolve métodos quantitativos e qualitativos, pesquisas regulares, canais de diálogo e uma comunidade que enfrenta, com transparência e boa vontade, os pontos divergentes e negocia. Mas, mais do que isso, é necessária a coragem de ouvir críticas — mesmo quando sejam de minorias. Ignorar essas vozes pode parecer confortável no curto prazo, mas mina a confiança e abre espaço para conflitos mais profundos no futuro.
É aqui que entra a responsabilidade de mapear os riscos inerentes ao negócio. Todo negócio B2B deve ter sensibilidade para perceber quando a corda está tensionada demais ou frouxa demais. Isso significa monitorar não só indicadores financeiros, mas também o clima no plano de crescimento comercial e a qualidade das relações. Com transparência, disposição para ajustar rotas, maturidade e respeito, o negócio torna-se possível.
A metáfora da tensão da corda resume bem esse ponto. Em um sistema de franquias, a corda nunca está completamente estável: oscila, se adapta, responde às forças que surgem de dentro e de fora. O papel da governança relacional é perceber esses movimentos e ajustar a gestão para que a corda não se rompa — mas também para que não perca a firmeza necessária para dar segurança a todos.
O momento da Cacau Show deixa um alerta para todo o mercado, não apenas para quem está no sistema de franquias: contratos podem ser revisados e políticas podem ser reescritas, mas, sem um verdadeiro compromisso com a relação e com a escuta do outro, tudo vira letra morta. O franqueado é o primeiro cliente, e o consumidor final só experimenta a força da marca quando o franqueado está motivado e confiante.
Mais do que nunca, precisamos de uma cultura de governança relacional, onde a mediação e o diálogo sejam vistos como estratégias — não como fraquezas ou vulnerabilidades. Como nos lembra o Dia dos Namorados que se aproxima, até namorados brigam, mas, se houver amor e abertura para o diálogo, tudo pode voltar a ser como antes — ou até melhor do que antes. All we need is love… and chocolate!
*Jurema Aguiar de Araújo é especialista em governança e conselheira consultiva