Em meio ao agravamento da guerra comercial entre Estados Unidos e China, que se expandiu para boa parte do mundo, o economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Antonio da Luz, comenta os impactos do novo tarifaço anunciado por Donald Trump. Em entrevista exclusiva do BRAZIL ECONOMY, ele analisa o efeito disso para a economia global e, especialmente, para o Brasil. Confira:
Os últimos dias têm sido turbulentos para o mercado global, com bolsas derretendo, dólar disparando e perspectivas de novas retaliações aos Estados Unidos, a exemplo da China. Como você enxerga essa movimentação no tabuleiro econômico mundial?
Estamos vivendo uma verdadeira guerra no comércio mundial, algo sem precedentes. Não é mais só China e Estados Unidos. Os EUA aplicaram tarifas a produtos de 180 países, inclusive o Brasil. Ficaram de fora só alguns, como a Rússia. É uma guerra sem precedentes. Aquilo que vimos no primeiro mandato do Trump nem se compara. Isso representa um retrocesso enorme no comércio global.
Você considera que a política de Trump tem alguma lógica?
Olha, entendo que o Trump levanta pontos legítimos. Há distorções no comércio global, sim. Mas ele perdeu completamente o ponto de equilíbrio. Passou da medida. Está exagerando de forma perigosa.
Alguns argumentam que o Brasil pode ser beneficiado, já que foi tarifado em 10%, enquanto a China enfrenta 34% e a União Europeia, 20%. Isso faz sentido?
Não. Essa leitura está completamente errada. Eu ouvi isso inclusive de gente que respeito muito, mas discordo. O Brasil não tem nada para comemorar. Como é que vamos nos beneficiar sendo sobretaxados? Isso não é vantagem.
Mas não haveria algum tipo de compensação? Por exemplo, menos concorrência em certos produtos?
Vamos colocar as coisas em perspectiva. Sim, há quem diga que alguns setores, como o agro, podem ganhar competitividade. Mas no geral, a economia brasileira perde. A inflação pode disparar nos Estados Unidos. Já tem estudo do Fed indicando alta de até 1,5 ponto percentual na inflação americana — de uma média de 2%. Isso pode levar os EUA a interromper a queda dos juros e até voltar a subir. E isso é péssimo para o mundo todo, inclusive para o Brasil.
Por quê?
Porque o Brasil vende, essencialmente, commodities. E commodities dependem diretamente do crescimento econômico. Se o mundo desacelera, o preço dessas commodities cai. A gente depende de ciclos positivos da economia global. Se o mundo entra em recessão ou mesmo em desaceleração, o Brasil é muito prejudicado.
Então não faz sentido dizer que o Brasil ganha nessa guerra?
Nenhum. É como estar num navio onde explodiu uma bomba na casa de máquinas. Só porque você está longe dela, não quer dizer que está seguro. O navio inteiro está comprometido. É assim que eu vejo a situação.
Mas você mencionou o agro. Ali há alguma vantagem?
Sim, no curto prazo. Aí a gente pode falar em benefício. Porque no caso do agro, especialmente soja, milho, café, canola, o Brasil e os Estados Unidos são os grandes fornecedores globais. Quando a China impõe uma tarifa de 34% sobre os EUA, automaticamente o produto brasileiro ganha competitividade.
Pode explicar melhor?
Claro. A soja, por exemplo, tem preço global. Quando a China aplica 34% de tarifa sobre a soja americana e nada sobre a brasileira, os chineses vão preferir comprar do Brasil. Isso já aconteceu em 2018 e 2019, só que numa escala menor. Os americanos têm que reduzir o preço para continuar competitivos, até o limite do custo de produção. Eles perdem margem. E nós conseguimos vender mais caro, dentro de uma faixa aceitável para o mercado chinês.
Então os produtores brasileiros ganham com isso?
No curto prazo, sim. Eles podem até aumentar os preços, já que o produto americano se torna artificialmente mais caro. A margem que os americanos perdem, o Brasil pode absorver como ganho. Mas isso é pontual e setorial. No médio e longo prazo, todos perdem.
Como você vê a reação da China e de outros países a essa ofensiva dos Estados Unidos?
A reação de retaliação é compreensível. Mas o Brasil precisa ter muito cuidado. Somos uma economia extremamente fechada. Se entrarmos no debate global para criticar os EUA, corremos o risco de escutar: ‘Mas quem é você na fila do pão?’ Eles podem simplesmente apontar para as dificuldades que enfrentam para vender no Brasil: burocracia, impostos, entraves ambientais. Nós criamos um monte de barreiras à importação.
Então é um contrassenso o Brasil exigir tarifas menores dos Estados Unidos?
Sim. Quando se trata de tarifas de importação, o Brasil não está exatamente em posição de exigir abertura de ninguém, nem dar lição de moral em público. Somos um dos países mais protecionistas do mundo. E isso é uma das razões do nosso subdesenvolvimento. Quando você não é exemplo de abertura, tem que ser muito moderado ao entrar nesse debate. Se quiser retaliar, faça silenciosamente.
O Congresso aprovou recentemente a Lei da Reciprocidade, de autoria da senadora Tereza Cristina. Qual o papel dessa legislação no contexto atual?
Essa lei foi pensada, inicialmente, para reagir às imposições ambientais da União Europeia, que prejudicavam as exportações brasileiras. Especialmente a tal lei do desmatamento, que é inaceitável. Eles não têm regras ambientais como as nossas e querem ditar o que devemos fazer. Essa lei da reciprocidade permite que o Brasil imponha restrições equivalentes às que sofrer. É uma resposta legítima.
Mas a aprovação da lei coincidiu com o tarifaço de Trump. Não parece uma reação direta?
Parece, mas foi uma coincidência. A urgência da votação veio antes do assunto Trump voltar ao centro do noticiário. Agora, sim, ela pode ser aplicada contra os Estados Unidos. Mas ela foi feita para enfrentar a postura da União Europeia. Ainda assim, pode ser um instrumento importante neste momento.
A União Europeia ficou numa posição delicada nesse cenário, certo?
Muito. A Europa perdeu o respaldo dos EUA, com quem sempre teve uma aliança comercial forte. Já tinha dificuldades com a Ásia. Agora ficou isolada. Se não avançar com o acordo com o Mercosul, vai ficar para trás. O problema é que, durante décadas, os governos europeus construíram um discurso protecionista — em nome da Amazônia, do meio ambiente, de tudo. Usaram isso para justificar preços altos ao consumidor e subsídios aos produtores.
E agora precisam “descantar o verso”, como se diz no Sul?
Exato. Eles criaram um verso muito bonito, mas agora precisam explicar por que vão abrir o mercado para produtos que antes diziam ameaçar o planeta. Não é fácil voltar atrás. Mas a realidade está forçando essa revisão. O mundo mudou, e eles vão ter que se adaptar.
Com tudo isso, podemos dizer que estamos vendo o fim da globalização?
Nem de longe. A globalização é irreversível. A tecnologia conectou o mundo de um jeito que não tem mais volta. As pessoas sabem dos produtos, das inovações, das oportunidades em qualquer canto do planeta, em tempo real. O que existe agora é uma tensão dentro desse processo. Há problemas na globalização? Sim. Mas também há um avanço imenso.
Então você vê esse episódio como algo passageiro?
Nem tão passageiro, nem um divisor de águas permanente. Eu acho que essa guerra comercial é um episódio relevante, com impactos reais, mas que tende a ser resolvido. Trump vai querer mostrar que avançou em algumas pautas, mas a vida vai seguir. O problema é o custo disso tudo. Podemos ter uma recessão global, que poderia ter sido evitada.