O inconsciente algorítimico: Algospeak e o desejo de dizer o que não pode ser dito

O algospeak é o truque, o chiste, a piscadela irônica trocada entre os usuários que desafia a lógica binária dos algoritmos. É como se os usuários dissessem: vocês podem ter o poder da plataforma, mas nós temos o poder da linguagem

Daniel Marques*
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Imagens: Divulgação

Daniel Marques, presidente da AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs)

Daniel Marques, presidente da AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs)

As redes sociais se tornaram templos digitais. Mas a liturgia quem dita não são os usuários, e sim eles: os algoritmos. Eles orientam o que pode ser dito, mostrado e lembrado. A comunicação deixou de ser apenas um fluxo entre emissores e receptores para se tornar um campo de disputa entre usuários, algoritmos, plataformas digitais e regulação. Mas a linguagem é viva, perspicaz, e nunca foi prisioneira fácil. Freud explica: assim como na psicanálise, em que a fala sempre escapa ao controle consciente, também no ambiente digital a palavra encontra vias inesperadas de expressão.

É nesse embate que surge o algospeak: um dialeto clandestino das redes sociais, que nasce como uma estratégia linguística para driblar a moderação algorítmica por meio de palavras alteradas, símbolos trocados, metáforas criativas. Tudo para escapar da vigilância de filtros automáticos que punem, limitam ou invisibilizam conteúdos considerados inadequados.

Mais do que uma adaptação inocente, o algospeak é uma linguagem subversiva, um novo modo de resistência cultural e comunicacional que, para além de ilustrar o dinamismo da linguagem, coloca em xeque o poder das plataformas. Ao trocar letras ou ressignificar termos, o algospeak se situa na interseção entre essas três forças: linguagem, poder e tecnologia. Silenciosamente, milhões de pessoas ao redor do mundo adaptam sua fala para sobreviver em ambientes altamente mediados.

O termo combina “algorithm” (algoritmo) e “speak” (fala), designando a prática de modificar a linguagem para evitar censura automatizada. Em vez de escrever “sexo”, escreve-se “seggs”; em vez de “suicídio”, “unalive”; em vez de “assédio”, “SA”, e assim por diante. Essas variações, aparentemente banais, carregam uma função estratégica: garantir visibilidade e circulação do conteúdo, parâmetros tão caros à quem sobrevive online. Como os algoritmos de moderação muitas vezes confundem contexto (por exemplo, bloqueando discussões acadêmicas sobre sexualidade ou saúde mental), usuários encontram formas criativas de burlar essas barreiras.

Lacan diria que há gozo no ato de escapar à lei. O algospeak, portanto, não se reduz a uma estratégia de sobrevivência: ele também revela o prazer que os usuários encontram em desafiar os limites impostos pelas máquinas. Há uma satisfação implícita no gesto de burlar a censura, como se cada palavra cifrada fosse parte de um jogo secreto, em que falar o proibido se torna ainda mais significativo justamente porque exige criatividade e astúcia. Há uma satisfação silenciosa nesse desvio, como se cada palavra cifrada fosse a prova de que o desejo encontra sempre um modo de dizer o indizível.

O algospeak é, portanto, o truque, o chiste, a piscadela irônica trocada entre os usuários que desafia a lógica binária dos algoritmos. É como se os usuários dissessem: vocês podem ter o poder da plataforma, mas nós temos o poder da linguagem. O mais fascinante é que esse fenômeno demonstra a plasticidade da linguagem humana – enquanto máquinas tentam congelar o sentido das palavras, os usuários as reinventam, criando uma espécie de gíria global, fluida e incontrolável.

Esse fenômeno, porém, revela a patente assimetria de poder entre plataformas e usuários. Se, por um lado, o discurso de ódio, a desinformação e o conteúdo prejudicial precisam ser combatidos, por outro, a filtragem automática cria efeitos colaterais de silenciamento. Comunidades vulneráveis, que muitas vezes utilizam a internet para trocar experiências sobre saúde, sexualidade ou política, acabam punidas de forma desproporcional. Assim, o algospeak é consequência da hipermoderação algorítmica, que muitas vezes erra a mão: bloqueia debates sobre liberdade enquanto deixa escapar conteúdos de ódio. Nesse cenário, uma verdade prevalece: quem não joga com as regras do algoritmo, simplesmente desaparece.

Também há algo essencialmente político nesse gesto. O algospeak é, em essência, uma linguagem da resistência desenrolada em um contexto digital. Ao mesmo tempo, desnuda a fragilidade das plataformas que se apresentam como neutras, mas exercem controle sobre o que circula. Usar algospeak é uma forma de hackear o sistema, de tomar de volta um mínimo de agência em um ambiente dominado por lógicas de silenciamento.

Em termos psicanalíticos, podemos dizer que a linguagem nunca é transparente: ela carrega sintomas, lapsos, deslocamentos. O algospeak pode ser lido como uma versão contemporânea disso — um “ato falho” coletivo, em que a linguagem (aquela que sempre deixará escapar) encontra brechas para dizer o que não pode ser dito sob censura. Assim como no inconsciente, onde o recalcado retorna disfarçado, nas redes sociais o conteúdo proibido retorna mascarado por gírias e substituições. O recalque das plataformas e da moderação algorítmica retorna na forma de hashtags, gírias e memes. E mais latente do que nunca.

Claro, nem tudo são flores nesse dialeto proibido. Se por um lado o algospeak amplia a liberdade, por outro ele pode ser usado para camuflar discursos de ódio, pornografia infantil ou desinformação. Essa ambivalência mostra que o problema não está na linguagem, mas na arquitetura algorítmica das plataformas – caixas-pretas que decidem o que circula e o que é silenciado. É o lado sombrio da equação: um código que protege também pode servir para esconder. A ambiguidade, inerente à vida, não deixa de existir em ambientes digitais.

Assim, o desafio não é entender o algospeak (sendo dado que ele continuará a se modificar conforme a censura avança), mas sim repensar os modelos de moderação. A resposta não pode ser apenas técnica: precisa ser também ética, política e regulatória. Trazer à consciência o que se oculta, falar sobre o elefante na sala.

O algospeak é a língua proibida do século XXI. É sexy porque é misteriosa, é poderosa porque é marginal, é perigosa porque escapa. Ele escancara que a moderação algorítmica não é neutra. É uma disputa de poder travestida de código, tornando-se exemplo claro de que a criatividade humana resiste mesmo sob vigilância algorítmica. Questiona a neutralidade da tecnologia e nos lembra que a palavra também é espaço de poder.

No fim das contas, o algospeak não é apenas sobre comunicação: é sobre quem tem o direito de falar, quem decide o que pode ser dito e até onde a liberdade de expressão resiste em tempos algorítmicos. Como queremos regular a fala na era digital? Como equilibramos proteção contra abusos e garantia de liberdade? Existe alguma forma de limitar aquilo que nos torna humanos, tão essencialmente humanos? Freud, no século 20 já nos dizia: o reprimido sempre retorna, e retorna com mais força quando tentamos silenciá-lo.

*Daniel Marques, presidente da AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs)

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