O governo de Donald Trump está avaliando cuidadosamente uma campanha para resgatar a economia da Argentina e o vacilante presidente Javier Milei. O sinal de que a equipe de Trump está levando o plano muito a sério é que ela convocou o renomado “Doutor do Dinheiro” internacional para explicar o modelo de transição da segunda maior economia da América do Sul para o dólar.
O “MD” da moeda é Steve H. Hanke, professor de economia aplicada na Universidade Johns Hopkins. Hanke é considerado a maior autoridade mundial em dolarização e em outras soluções que vinculam economias emergentes ao dólar, um status que conquistou tanto por sua vasta produção acadêmica quanto por sua atuação direta como assessor de governos que abandonaram políticas monetárias domésticas discricionárias para reaquecer suas economias e conter a hiperinflação.
Nos últimos dois meses, a administração Trump vem consultando Hanke discretamente em uma série de reuniões de alto nível, segundo revelou a revista Fortune. De acordo com o economista, o interesse do governo em um plano que substituiria o peso argentino pelo dólar aumentou significativamente nas últimas semanas, à medida que as perspectivas políticas de Milei se enfraqueceram. Manter a agenda de Milei em andamento é um ponto crucial da política externa de Trump. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, elogia Milei por conduzir uma reforma capaz de reverter “100 anos de declínio” e salvar a nação do “fracasso estatal” iminente. Para Bessent, a Argentina de Milei servirá de “farol” para a América do Sul, provando que o supercapitalismo é o caminho para a prosperidade em um momento em que outras grandes economias do continente, como Brasil, Colômbia e Venezuela, são governadas por administrações de esquerda.
O principal diplomata americano, Marco Rubio, tem redirecionado o foco da política externa dos EUA para a América do Sul, alegando que a região foi negligenciada por governos anteriores. Rubio lidera uma campanha para conter a “maré rosa”, a onda de políticas econômicas de inspiração socialista que avança pela América Latina. Filho de imigrantes cubanos, Rubio também busca limitar a crescente influência da China na região. Em ambas as frentes, Milei desponta como o principal aliado da administração americana.
Além disso, os dois presidentes vivem um “bromance” intercontinental. Trump já se referiu a Milei como “meu presidente favorito” e “um líder fantástico e poderoso”, enquanto o argentino aplaude as iniciativas de comércio e imigração da agenda MAGA de Trump por “salvar o mundo da catástrofe”. Hanke observa: “Trump provavelmente está procurando uma forma de tirar seu amigo Milei da água quente. É por isso que o governo está estudando maneiras de ajudá-lo a cumprir sua principal promessa de campanha, a promessa de dolarizar a Argentina.”
A convocação do “Doutor do Dinheiro”
Em 13 de agosto, o governo Trump convidou Hanke para uma reunião na Casa Branca, no edifício executivo Eisenhower, para apresentar um briefing sobre dolarização e outras políticas de vinculação monetária ao dólar. Cerca de 15 economistas e especialistas em assuntos internacionais do Council of Economic Advisers, National Economic Council e National Security Council participaram.
“Foi como um seminário de pós-graduação”, recorda Hanke. “Os participantes eram altamente qualificados e bem preparados. Respondi a todas as questões técnicas sobre a história e a mecânica da dolarização. Ficou claro que alguém no alto escalão da Casa Branca havia ordenado que eles se debruçassem sobre o tema.”
Na época, os participantes pareciam interessados em promover o uso global do dólar, o que se alinhava ao apoio da administração a stablecoins lastreadas em dólar, conforme a nova Lei GENIUS. Hanke explicou que regimes de currency board, sistemas em que a moeda local é totalmente lastreada por reservas em dólar e conversível a uma taxa fixa, também aumentam a demanda por títulos do Tesouro americano. Um avanço desses sistemas poderia, inclusive, reduzir os juros nos EUA.
Nessa reunião, Hanke citou dois países como principais candidatos à dolarização: Líbano e Argentina.
Duas semanas depois, em 28 de agosto, ele foi reconvocado a Washington. Desta vez, além dos mesmos órgãos, participou um representante do Tesouro dos EUA e uma figura política de alto escalão da Casa Branca, cujo nome Hanke preferiu não divulgar. “Essa pessoa confirmou que havia um grupo influente no governo favorável à dolarização e que queria se aprofundar no assunto”, afirmou.
O foco da segunda reunião foi nos detalhes técnicos da implementação de regimes dolarizados e currency boards. Questionado se o processo exigiria participação direta dos EUA, Hanke explicou que, historicamente, experiências como as do Equador e El Salvador ocorreram sem envolvimento formal de Washington, embora certos cenários pudessem incluir apoio americano.
A derrota eleitoral de Milei e a corrida para salvar sua agenda
Ao final do encontro, Hanke recebeu “tarefas de casa”: elaborar análises sobre os requisitos técnicos da dolarização. Em seus relatórios, ele reduziu de 239 para 50 os países mais viáveis, com a Argentina entre os primeiros da lista.
Mas, em 8 de setembro, apenas 11 dias após a reunião, o partido de Milei, LLA, sofreu uma derrota esmagadora nas eleições da província de Buenos Aires para os peronistas de centro-esquerda. O resultado acendeu o alerta para o pleito legislativo de 26 de outubro, já que o distrito representa cerca de 40% do eleitorado argentino. Nas semanas seguintes, o peso caiu 8% frente ao dólar.
Em 22 de setembro, Bessent anunciou um possível swap de US$ 20 bilhões, trocando dólares em caixa por títulos argentinos denominados em dólar. Mesmo assim, a medida foi insuficiente e o peso voltou a cair no fim do mês. Para a Casa Branca, a mensagem era clara: promessas de ajuda dos EUA e novos pacotes do FMI não bastariam. Sem uma ação ousada e rápida, uma onda anti-Milei poderia pôr a perder suas reformas pró-mercado.
Embora em estágio inicial, essas reformas já apresentavam resultados expressivos. Desde que assumiu em dezembro de 2023, Milei eliminou diversos controles de preços, inclusive sobre aluguéis, e impôs disciplina fiscal, tornando a Argentina o único país do G20 com superávit orçamentário. A economia, antes em retração, voltou a crescer moderadamente.
Ainda assim, a população sente o peso da crise. Milei herdou uma inflação de 200% ao ano, que reduziu para cerca de 34%, e juros ao consumidor em 70%.
A defesa da dolarização
Hanke reafirmou em Washington que a dolarização seria a melhor solução, uma proposta que defende desde 1991. Nesse modelo, o país abandona completamente sua moeda local: cidadãos trocam pesos por dólares no banco central, que é desativado. A inflação e os juros passam a acompanhar os dos EUA.
Apesar de ter feito da dolarização o eixo de sua campanha, Milei recuou após assumir, seguindo as recomendações do FMI para conter gastos públicos, estratégia que, segundo Hanke, não basta para evitar uma guinada política à esquerda.
Após a derrota em Buenos Aires e a nova queda do peso, Hanke enviou à Casa Branca um documento de 20 páginas intitulado “Notas e Reflexões sobre a Dolarização do Equador: Um Modelo para a Argentina”. No texto, ele relata como o Equador, em situação pior que a da Argentina atual, conseguiu estabilizar a economia ao adotar o dólar em 2000. Mesmo enfrentando tentativas de reversão, o regime se manteve por 25 anos, com inflação inferior à dos EUA.
Hanke lembra que a Argentina fracassou com o sistema de convertibilidade dos anos 1990 por não adotar um currency board rígido. Em 2002, ao abandoná-lo, o país mergulhou em duas décadas de inflação e crises cambiais, recorrendo ao FMI, que já implementou 23 programas de resgate no país, sem sucesso. Hoje, a Argentina deve US$ 41,8 bilhões ao Fundo, quatro vezes mais que a Ucrânia, sendo seu maior devedor.
Para o economista, o verdadeiro problema é o peso e a política monetária do BCRA. “Os argentinos preferem dólares, não pesos”, escreveu. “Se quisessem pesos, não haveria necessidade de controles cambiais.” Por isso, ele conclui: “A dolarização é a solução de menor custo para o governo argentino, para o governo dos EUA e para o FMI.”
Hanke afirma que o país possui reservas suficientes em dólar para trocar todas as notas e depósitos em circulação. O câmbio de conversão, segundo ele, deveria ser definido após cerca de 60 dias de flutuação livre, o mesmo método aplicado por ele na Bulgária em 1997.
Os críticos alegam que dolarizar privaria a Argentina da capacidade de ajustar juros e emprego conforme o ciclo econômico. Hanke rebate: “Se esse ‘ajuste fino’ funcionasse, a inflação não teria sido de 200% quando Milei assumiu e quase 35% hoje. As pessoas pagam 70% de juros e os críticos se preocupam com o ciclo econômico?”
O papel dos EUA e do FMI
Hanke acredita que Milei tem sido contido pela resistência do FMI, mas que isso pode mudar. “Os técnicos do governo Trump estão analisando a dolarização como cura para crises monetárias e também como forma de expandir o uso internacional do dólar, possivelmente começando pela Argentina”, afirma. “Isso geraria um choque de confiança e um boom econômico no país, além de servir de exemplo para seus vizinhos.”
Segundo ele, se Trump apoiar a dolarização, o FMI seguirá a mesma linha, já que os EUA são seu maior acionista. “Trump é a peça central”, diz Hanke. “Se ele agir, o FMI agirá junto. Com o apoio de Trump, Milei poderá cumprir sua promessa, livrar-se do peso que sufoca a economia e avançar na dolarização.”
Até o momento, o governo Trump não se pronunciou publicamente sobre o tema. Hanke ressalta que nenhuma decisão definitiva foi tomada. Ainda assim, a iniciativa pode ser o próximo grande movimento de Trump, uma jogada que salvaria seu aliado argentino e estabeleceria um novo modelo de livre mercado capaz de conter a maré rosa latino-americana.