A relação entre religião e consumo de vinho é tão antiga quanto complexa — ora simbiótica, ora conflituosa. Em tempos de crescente globalização do mercado vitivinícola, uma variável menos debatida, porém decisiva, ganha protagonismo: o impacto da fé nas trocas internacionais de vinho. Um estudo recente dos economistas Sandro Steinbach e Carlos Zurita, da North Dakota State University, publicado no site da AAWE (American Association of Wine Economics), traz luz a esse tema ao cruzar dados de comércio bilateral de vinhos com a composição religiosa de 102 países entre 1988 e 2023. As conclusões são surpreendentes — e têm implicações relevantes inclusive para o Brasil e países de maioria muçulmana.
O vinho como vetor cultural e religioso
Ao longo da história, o vinho ocupou lugar central em diversos rituais religiosos: do cristianismo ao judaísmo, do paganismo greco-romano ao islamismo, ainda que com significados opostos. Se, por um lado, ele é o sangue de Cristo na eucaristia católica, por outro, é proibido no Alcorão. Assim, a presença ou ausência do vinho na cultura de um povo está intimamente ligada a seus dogmas, hábitos e fronteiras simbólicas.
Comércio em fermentação: um mercado globalizado
O comércio internacional de vinho triplicou nos últimos 60 anos: em 1960, apenas 10% da produção mundial era exportada; hoje, esse número ultrapassa 42%. França, Itália, Espanha, Chile, EUA e Austrália lideram esse mercado. Mas o que determina para onde o vinho vai? Segundo o estudo da AAWE, mais do que tarifas alfandegárias ou acordos comerciais, a religião tem um papel crucial na fluidez dessas trocas.
Protestantismo: o fermento do comércio de vinho
Entre todas as religiões analisadas, o protestantismo é a que mais favorece o comércio internacional de vinhos. Países que compartilham uma população protestante significativa tendem a trocar mais vinho entre si. Um aumento de 1 ponto percentual na proporção comum de protestantes entre dois países gera um aumento de 1,3% nas trocas bilaterais de vinho — um impacto superior ao de zerar as tarifas comerciais. A razão? Embora historicamente austero, o protestantismo moderno, especialmente nos países do Norte da Europa e da América do Norte, se dissociou de restrições ao álcool, favorecendo a experimentação e o consumo responsável.
Católicos, ortodoxos e muçulmanos: o freio simbólico
Em contraste, países com predominância católica, ortodoxa, muçulmana ou de “outros cristãos” (como pentecostais) tendem a apresentar menor intensidade nas trocas de vinho. O estudo indica que um aumento de apenas 1 ponto percentual na população comum dessas religiões pode reduzir o comércio em até 7,6%, no caso do islamismo. A explicação é cultural: embora católicos tradicionalmente usem o vinho em ritos, em muitas sociedades latino-americanas e africanas há forte associação do álcool com pecado ou vício.
O Brasil evangélico: potência emergente ou mercado retraído?
No Brasil, a explosão do evangelicalismo tem mudado o panorama religioso e, potencialmente, o mercado consumidor de vinhos. Em 1980, evangélicos representavam menos de 7% da população; hoje, são cerca de 32% (IBGE, 2022), com projeções apontando para uma maioria evangélica até 2030. Se parte dos protestantes históricos consome vinho, a maioria dos pentecostais e neopentecostais se abstém, por motivos religiosos e morais. Isso pode explicar, em parte, a dificuldade de crescimento do vinho em regiões de forte presença evangélica, como o Norte e o Centro-Oeste.
Muçulmanos e vinho: entre a proibição e o mercado paralelo
Nos países de maioria islâmica, o consumo de vinho é legalmente proibido ou socialmente marginalizado. Em mercados como Arábia Saudita, Irã e Afeganistão, o comércio formal de vinhos é inexistente. Já em países mais liberais, como Turquia, Marrocos e Tunísia, há produção e exportação, mas o consumo interno segue restrito. Apesar disso, existe um mercado informal relevante, muitas vezes ligado ao turismo ou às elites urbanas. Curiosamente, o estudo revela que a ausência de alinhamento religioso com países muçulmanos gera barreiras culturais mais fortes do que as tarifas comerciais.
Casos paradoxais: Israel, Índia e África do Sul
Israel, com uma população judaica significativa, apresenta exceção: o consumo e a exportação de vinho kosher são fortes, mesmo com restrições religiosas. Na Índia, onde predominam hindus e muçulmanos, o consumo de vinho é baixo, mas há crescente interesse urbano, especialmente em Nova Délhi e Mumbai. Na África do Sul, a presença protestante e a herança colonial criaram um dos maiores mercados e exportadores do hemisfério sul.
Brasil: oportunidades e tensões no mercado interno
O mercado brasileiro de vinhos segue em expansão, mas com desafios. Em regiões de maioria católica, como o Sul e o Sudeste, o consumo é culturalmente enraizado. Já em áreas evangélicas, há resistência simbólica. O setor enfrenta ainda o dilema de promover o vinho sem antagonizar grupos religiosos. Campanhas que associam vinho à saúde, à moderação e à cultura têm mais aceitação do que aquelas focadas em prazer ou ostentação.
O vinho entre a fé e o mercado
A religião é um fator estruturante das rotas comerciais, capaz de abrir ou fechar mercados de forma invisível. Exportadores atentos podem usar essa informação para escolher mercados mais receptivos, adaptar estratégias de marketing e construir pontes culturais antes mesmo de fechar negócios.
A conclusão é clara: enquanto a globalização empurra o vinho para novos mercados, a fé impõe limites e direções. Em tempos de polarização religiosa e cultural, entender essas dinâmicas pode ser tão importante quanto dominar as safras e os terroirs. No Brasil, onde a religião molda a política, a moral e o consumo, o futuro do vinho não dependerá apenas da qualidade da uva — mas da sensibilidade com que será servido à mesa da diversidade.