Mariangela Hungria é a primeira brasileira a receber o “Nobel” da Agricultura. Com uma pesquisa sobre insumos biológicos que revolucionam a agricultura, a engenheira agrônoma da Embrapa Soja entrou para a história ao ser anunciada como vencedora do World Food Prize, concedido a pessoas que contribuíram significativamente para melhorar a qualidade, a quantidade ou a disponibilidade de alimentos no mundo. O prêmio reconhece o impacto do trabalho de Mariangela.
Há mais de três décadas, ela pesquisa formas de substituir fertilizantes químicos por alternativas sustentáveis, como os inoculantes — produtos com microrganismos benéficos que ajudam as plantas a absorver nutrientes. Estima-se que suas soluções estejam presentes em mais de 40 milhões de hectares cultivados no Brasil, gerando uma economia anual de até US$ 25 bilhões para os agricultores e evitando a emissão de mais de 230 milhões de toneladas de CO₂ equivalente. A cientista também é uma das pioneiras na proposta da fixação biológica de nitrogênio como substituto aos fertilizantes químicos. O método permite que bactérias fixadoras convertam o nitrogênio do ar em formas assimiláveis pelas plantas, promovendo um ciclo agrícola mais limpo e eficiente.
Graduada pela Esalq/USP e doutora pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Mariangela ingressou na Embrapa em 1982. Desde 1991, atua na unidade de Londrina (PR), onde conduziu mais de 500 ensaios de campo para validar o uso de inoculantes biológicos em condições tropicais. A resistência inicial à adoção da tecnologia não a desanimou. Os recursos para pesquisa eram escassos, e os biológicos não eram levados a sério. Era preciso persistir — e foi o que ela fez.
À frente do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia MicroAgro, a pesquisadora articula uma rede nacional de laboratórios, fortalecendo a soberania científica brasileira em um cenário global marcado por disputas geopolíticas e escassez de insumos agrícolas. Seu currículo inclui mais de 500 publicações científicas, a formação de mais de 100 mestres e doutores e o reconhecimento entre os cientistas mais influentes do mundo, segundo ranking da Universidade de Stanford.
A conquista do World Food Prize é mais do que um reconhecimento individual: posiciona o Brasil no centro do debate global sobre segurança alimentar, mudanças climáticas e inovação tecnológica. Também projeta a ciência brasileira como protagonista na construção de um agronegócio competitivo, sustentável e socialmente responsável.
Como foi que a sra. se interessou pela ciência?
Desde que me entendo por gente. Quando criança, eu já era muito curiosa, queria saber das coisas, queria mexer em tudo. E a minha grande inspiração foi a minha avó. Ela era professora de Ciências, percebeu essa curiosidade e investiu nisso. Tomava o tempo dela para me explicar as coisas, mostrava livros e até fazia experiências comigo. Quando eu tinha 8 anos, ela me deu um livro chamado Caçadores de Micróbios. Fiquei encantada. Logo depois, me deu a biografia de Madame Curie e percebi que as mulheres também podiam ser cientistas. Minha avó sempre dizia que era possível e que eu conseguiria.
A agricultura e os interesses dos agricultores constantemente batem de frente com a sustentabilidade e os ambientalistas. Quais são os maiores desafios do setor neste momento e como a sra. enxerga o futuro?
Foi o que aconteceu até neste próprio prêmio. Foi uma lição para mim, porque justamente temos tanto antagonismo, não é? Parece que existem dois tipos diferentes de agricultura, e eu fico nesse fogo cruzado, porque nós, da pesquisa, queremos atender a todos. Achei que o tema do prêmio geraria polêmica pelo fato de eu trabalhar na Embrapa Soja, carro-chefe da minha pesquisa, algo sempre motivo de debate. O que me deixou contente foi perceber que a sustentabilidade une a classe. Quando souberam da premiação, fui homenageada tanto pelo MST (Movimento dos Sem-Terra) quanto pelos grandes agricultores do País.
Eu enxergo que, assim como em todos os setores, existem péssimos agricultores, e sabemos disso. Infelizmente, são eles que podem ter grande poder de influência sobre políticas públicas. Mas trabalho diretamente com agricultores, e a maioria vem até nós tirar dúvidas, questionar, saber como aplicar métodos para melhorar a saúde do solo e se mostram preocupados com emissões de carbono e mudanças climáticas. Hoje eles são mais conscientes de que precisam investir em educação e sustentabilidade, além de valorizar parcerias, como o projeto das abelhas na soja: ficou comprovado que as abelhas aumentam a polinização e, consequentemente, a produção. O grande agricultor, que quer aumentar a produtividade mas não tem tempo para criar abelhas, financia fundações que dão treinamento a pequenos produtores.
Outra experiência interessante foi quando aceitei ir a um congresso em Viena, no Palácio de Schönbrunn, para falar sobre insumos da soja. Imaginei que seria massacrada, vista como alguém que quer destruir o planeta. Para minha surpresa, a plateia estava lotada e fui muito procurada. Lá, a redução no consumo de carne cresce e a soja está se tornando cada vez mais a proteína preferida. Fui requisitada pelo conhecimento que o Brasil possui em tecnologia de cultivo, e isso foi sensacional.
A sra. é a primeira brasileira a receber o “Nobel” da Agricultura. Como surgiu esse interesse em buscar soluções sustentáveis para o setor?
Primeiro, eu jamais esperava ganhar o prêmio. Trabalhamos tanto que não pensamos em ganhar algo assim; parecia inatingível. Foi uma surpresa enorme e ainda maior está sendo a repercussão. É uma grande oportunidade, principalmente para falar de ciência e do papel da mulher. É muito importante popularizar o setor científico, e espero estar ajudando a abrir esse canal. Desde criança, eu queria seguir para a biologia e ficava arrasada ao ver pessoas passando fome. Queria trabalhar com algo que ajudasse a combatê-la. Então, naturalmente, fui para a agronomia. Entrei na faculdade em plena Revolução Verde, quando a projeção era de crescimento populacional acelerado e produção de alimentos insuficiente. Um engenheiro agrônomo provou, com melhoramento genético e adubação química, que seria possível suprir essa demanda, e ganhou o Nobel da Paz por isso. Na época, só tínhamos aulas de química, nada de biológicos. E eu já achava necessário abrir espaço para esse campo. Não foi fácil. Trabalhei com algo em que poucos acreditavam, mas segui minha vocação. Sinto que minha escolha para o prêmio simboliza a resistência e resiliência na agricultura e na pesquisa.
Há mais de três décadas, a sra. pesquisa formas de substituir fertilizantes químicos por alternativas sustentáveis, como inoculantes. Como esses métodos podem beneficiar o setor, movimentando a economia e reduzindo emissões de carbono?
Vou dar o exemplo do carro-chefe da minha pesquisa: a soja. Todas as plantas precisam de nutrientes, mas o nitrogênio é o mais demandado. O paradoxo é que o ar tem quase 80% de nitrogênio gasoso, mas nenhum ser vivo consegue aproveitá-lo. Alguns micro-organismos, que existem há bilhões de anos, evoluíram com uma enzima capaz de capturar esse nitrogênio e transformá-lo em forma assimilável pelas plantas. Sem esses micro-organismos, é necessário usar fertilizantes nitrogenados, produzidos em altíssimas temperaturas e pressão, consumindo em média seis barris de petróleo para cada tonelada de amônia. Hoje, somos os maiores produtores e exportadores de soja graças a eles. Sem essa associação, seria impossível. Além disso, o fertilizante nitrogenado é altamente poluente: 1 kg equivale a 10 kg de emissão de carbono. Só na última safra, deixamos de emitir cerca de 250 milhões de toneladas de CO₂. Houve momentos em que fui criticada e até pediram minha demissão por defender essa linha. Mas descobrimos que alguns micro-organismos produzem fito-hormônios que aumentam o crescimento das raízes, melhorando a absorção de água, nutrientes e até do próprio fertilizante. Inovamos, então, ao propor o uso de micro-organismos para aumentar a eficiência dos adubos. Hoje, a indústria está voltada para esses novos processos.
É possível que a inteligência artificial ajude nesse processo e no futuro da agricultura?
Acho que sim. Estou há mais de 40 anos nesses estudos, e métodos de laboratório para identificar propriedades que beneficiam plantas podem demorar anos. Hoje, podemos mapear um genoma com IA, acelerando seleção e identificação, otimizando nosso tempo. Dá vontade de ter mais 40 anos de profissão para acompanhar o avanço.
A sra. é mãe de duas filhas e construiu carreira em um país com instabilidade na pesquisa científica. Quais são os desafios de ser mulher à frente dessas pesquisas?
O desafio é grande. Mas tenho refletido em como esse prêmio é uma grande oportunidade. Tenho dedicado a conquista às mulheres, porque não se trata apenas de produção de alimentos. Produzir alimentos é resolver 30% a 40% do problema da segurança alimentar. E o papel das mulheres nisso é ainda maior, mas invisível. Desde mulheres que cultivam hortas domésticas e comunitárias, cuidam de plantas medicinais, transmitem saberes de geração em geração, até as que educam e informam sobre nutrição – todas estão construindo a próxima geração que pode se alimentar melhor. Nosso papel é fundamental, mas ainda pouco valorizado. Uma mulher que faz uma horta comunitária é tão importante quanto uma que ganha o Nobel da Agricultura.
Qual conselho você daria às futuras cientistas?
Ainda enfrentamos muitas limitações. Ouvimos muito mais “nãos” que os homens. Eu fui campeã dos “nãos”. Engravidei na faculdade, estava em uma profissão majoritariamente masculina e queria trabalhar com biológicos. Todos diziam que eu não teria futuro. O “não” deve nos fortalecer para mostrar que estão errados. Minha avó, há mais de 60 anos, já dizia que eu podia ser o que quisesse. Então, sigam a profissão e o que realmente desejam fazer, com vontade e determinação.
A COP30 está chegando e a agricultura será tema central. A Embrapa e o governo pretendem trazer essas soluções sustentáveis para o debate?
Sim. Nós, da Embrapa, temos uma unidade em Belém, na Amazônia Oriental, a cerca de 2 km do centro. Estamos preparando demonstrações de tecnologias sustentáveis: insumos, bioeconomia, plantio direto, sistemas de integração e muito mais. É importante que a COP30 melhore nossa imagem, pois muitas vezes somos vistos como “demônios”. Mas como isso é possível se somos campeões mundiais no uso de biológicos, no plantio direto, e temos um Código Florestal considerado modelo? Agora, no fim da minha carreira, tenho me dedicado cada vez mais à recuperação de pastagens degradadas. Os micro-organismos devolvem vida ao solo, aumentam a lotação de gado e permitem triplicar a produção nacional sem derrubar uma árvore. Esse deve ser o objetivo: combinar produção de alimentos e preservação ambiental – e temos tecnologia para isso.
O agricultor que não investe em sustentabilidade carece de conhecimento ou de interesse?
Depende. Entre grandes agricultores, é inexplicável querer maximizar lucro sem entender que isso só se dá com estabilidade na produção. Já os pequenos, infelizmente, estão muitas vezes abandonados, sem assistência técnica e conhecimento. São os que mais precisam, os mais dispostos a aprender e extremamente gratos por qualquer informação. Mas, às vezes, mesmo com conhecimento, não têm suporte para aplicar na prática.
Como lutar pela soberania científica em um cenário global de disputas geopolíticas e escassez de insumos agrícolas?
A geopolítica está mudando também em relação à ciência. O que acontece agora nos Estados Unidos é prova de como o investimento em ciência precisa ser contínuo. Eles sempre foram líderes e caíram drasticamente. A China, por outro lado, investe 4,5% do PIB para dobrar a produção científica em relação aos EUA em pouco tempo. Já o Brasil cai mais a cada ano: hoje não chega a 0,5% do PIB. Estou há mais de 40 anos na Embrapa e nunca vivi uma situação tão difícil. Para conseguir algo, a burocracia é ainda maior, dependendo de emendas parlamentares. Todos elogiam a entidade, mas não investem nela.