O Brasil gosta de falar em soberania, mas quando o assunto é tecnologia, somos mais inquilinos do que donos da própria casa. Entregamos nossa infraestrutura digital às Big Techs norte-americanas e ainda pagamos caro pelo aluguel.
Durante séculos, o país exportou pau-brasil, açúcar, ouro. Agora, exporta dados. É a nova versão da velha dependência: somos colônia digital do Vale do Silício. A diferença é que, em vez de navios, o escoamento passa pela nuvem. E a colonização, em vez de ser portuguesa, é norte-americana.
Denomino “brazilianas” as empresas brasileiras de tecnologia que foram sequestradas/capturadas pelos interesses e capital norte-americanos.
No setor público, a SERPRO e a Dataprev são “barrigas de aluguel” das Big Techs. A criação da “Nuvem Soberana” pelo governo federal é um excelente exemplo. Uma infraestrutura que deveria ser a base da nossa segurança e soberania digitais, mas, na verdade, utiliza tecnologia da Amazon, Oracle e Google. Nuvem americana, pois.
No setor privado, o Jusbrasil, amplamente usado por tribunais, advogados e órgãos públicos, é controlado por uma holding registrada em Delaware, nos Estados Unidos, e recebeu mais de US$ 120 milhões em investimento internacional. Isso significa que grande parte do banco de dados jurídicos do país está, potencialmente, submetida à legislação americana, por meio da Cloud Act. Dados de processos, cidadãos e empresas podem ser requisitados por autoridades estrangeiras, tudo dentro da lei americana e em detrimento da nossa soberania digital.
O preço da dependência: financiamos a nossa colonização digital
Estudo recente de pesquisadores da USP, UnB e FGV mostra que o governo brasileiro já gastou mais de R$ 23 bilhões em contratos públicos com as Big Techs. Ao invés de investirmos na pesquisa, ciência e tecnologia nacionais, em vez de construirmos a nossa “casa tecnológica”; alugamos tecnologia gringa. Pagamos, todos os meses, o aluguel de sistemas e tecnologias que não controlamos e que estão sob jurisdição estrangeira…
Isso é extremamente grave, os nossos dados estão vulneráveis e podem ser submetidos ao governo norte-americano por meio das Big Techs, mesmo quando estes dados estejam armazenados fisicamente no Brasil. Por meio da Cloud Act (lei da nuvem norte-americana), informações sensíveis podem ser acessadas agilmente por autoridades estrangeiras, sem o consentimento do cidadão brasileiro.
A dependência não é apenas econômica. É também geopolítica e estratégica. Se uma crise diplomática surgir, nossas informações mais sensíveis podem ficar inacessíveis ou serem requisitadas por outro país. Caso uma Big Tech aperte um botão, o governo brasileiro pode parar de funcionar. Caso os dados do Jusbrasil forem submetidos ao Cloud Act, dados de tribunais, cidadãos e empresas estarão sob jurisdição estrangeira.
Soberania digital: do discurso à prática
Não somos condenados a ser colônia. Chega de complexo de vira lata. Somos capazes, o Pix é prova disso, mas precisamos agir! O que falta não é talento, é vontade política e visão estratégica. Precisamos de um Plano Nacional de Soberania Digital que contemple, no mínimo:
- Soberania de dados: garantir que informações estratégicas, inclusive jurídicas, permaneçam sob controle nacional;
- Autonomia tecnológica: desenvolver nossa própria infraestrutura e serviços digitais; priorizar, nas compras públicas, as tecnologias brasileiras de empresas com capital, controle e sob jurisdição nacionais; chega de empresas gringas ou brazilianas nos contratos públicos nacionais.
- Regulação efetiva das Big Techs: exigir obrigações locais de transparência e hospedagem de dados;
- Cibersegurança: proteger infraestruturas críticas;
- Capacitação digital: preparar a população e servidores públicos para uso seguro e consciente da tecnologia.
Hora de construir nossa própria casa tecnológica
Raul Seixas já cantava nos anos 1980 que “a solução é alugar o Brasil”. Hoje, a metáfora virou realidade: continuamos alugando nossa infraestrutura digital, inclusive com dados jurídicos vitais hospedados no exterior. O país que criou o Pix e é atual presidente do BRICS pode (e deve) criar sua própria inteligência artificial, proteger seus dados e não depender de plataformas estrangeiras para armazenar informações estratégicas.
O futuro do Brasil não pode ser hospedado nos servidores de outro país… Chega de aluguel!
*Clóvis Reimão é mestre e pesquisador em Direito Público, Governo Digital e IA, e membro da Comissão de Governo Digital e IA do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA)

