Conta a Bíblia que o primeiro milagre de Jesus Cristo de Nazaré foi transformar água em vinho para salvar o clima de uma festa de casamento. Nas mesmas Escrituras, o Filho de Deus pediu na última ceia que seus seguidores comessem do pão e bebessem do vinho em memória de seu sacrifício. Paradoxalmente, é o crescimento do público evangélico no País nos últimos anos que tem limitado o alcance das bebidas alcoólicas entre parte dos cristãos, inclusive o vinho, embora nem todo cristão seja abstêmio.
De olho nesse público, assim como nos jovens que vêm reduzindo o consumo de álcool, a Cooperativa Vinícola Aurora, do Rio Grande do Sul, direciona sua estratégia para emplacar vinhos desalcoolizados. Segundo o executivo Rodrigo Valerio, diretor da cooperativa, o objetivo é ampliar o alcance da bebida e acelerar a expansão a partir de 2026. “Queremos trazer esses novos perfis de consumidores, como a Geração Z, que tende a reduzir o consumo de álcool, e também o público evangélico, que representa de 26% a 30% da população brasileira, segundo o último Censo”, afirmou.
Para convencer jovens e evangélicos abstêmios a beber vinho, sem culpa ou “pecado”, a Aurora aposta em três rótulos: dois tintos (Cabernet Sauvignon) e um branco (Chardonnay), produzidos por meio de um processo tecnológico que remove o álcool sem comprometer, segundo Valerio, o aroma e o sabor da bebida. Essa nova linha foi a principal novidade apresentada pela cooperativa durante a feira ProWine São Paulo, realizada na última semana.
“A desalcoolização é complexa. Utilizamos vácuo e baixas temperaturas para evaporar o álcool, preservando os compostos mais sensíveis. O resultado foi surpreendente”, explicou o executivo. “Queremos oferecer um produto que respeite hábitos e crenças, permitindo celebrar casamentos, formaturas e encontros com uma taça na mão, sem álcool e sem abrir mão da experiência”, completou.
O produto também despertou interesse de restaurantes e bares que buscam opções de driver friendly drinks, alternativas para motoristas da vez e consumidores que evitam bebidas alcoólicas, mas desejam participar dos brindes.
Mesmo em um ano considerado “complexo” para a economia e para o setor de bebidas, a Cooperativa Vinícola Aurora deve encerrar 2025 com crescimento de faturamento entre 3% e 3,5%, superando os resultados de 2024. A empresa projeta faturar cerca de R$ 865 milhões em 2025, contra R$ 841 milhões no ano anterior. O avanço, embora tímido, é considerado sustentável. Para 2026, a expectativa é de crescimento entre 7% e 8%, apoiado em novas linhas de produtos e no fortalecimento da marca no mercado nacional.
Segundo Valerio, o desempenho é sustentado por maiores volumes de venda, apesar das margens pressionadas por estoques elevados de vinhos, espumantes e sucos de uva, consequência de uma safra excepcional no início do ano. “Crescemos praticamente 3,5% até setembro. É um resultado que fica abaixo da inflação, mas mostra que estamos vendendo mais do que no ano passado, o que, em um cenário tão desafiador, já é uma conquista”, avaliou o executivo.
Estoques altos e margens apertadas
O início de 2025 foi marcado por uma oferta abundante de uvas, o que elevou a produção e reduziu preços. Apesar disso, a Aurora evitou adotar uma política agressiva de descontos para preservar o equilíbrio financeiro e o posicionamento da marca.
“Quando há excesso de oferta e se reduz demais o preço, corre-se o risco de comprometer o compliance financeiro. A Aurora já pratica valores democráticos: temos vinhos entre R$ 12 e R$ 150, com foco em qualidade e acesso para o consumidor brasileiro”, acrescentou Valerio.
Sem ressaca com o tarifaço
As exportações da Aurora seguem concentradas em sucos de uva, produto líder no portfólio externo, e em vinhos populares, como o Sangue de Boi, que mantém forte apelo entre comunidades brasileiras nos Estados Unidos. O executivo confirma que a empresa iniciou exportações desse rótulo para o mercado americano, mas o aumento de tarifas sobre bebidas alcoólicas impostas pelo governo dos EUA trouxe incertezas.
“Nossos importadores disseram que vão manter os pedidos e repassar o custo ao consumidor. Como são produtos de baixo valor agregado, ao custo de menos de US$ 2 por garrafa, o impacto deve ser pequeno”, afirmou.
Além do mercado americano, a cooperativa mantém presença constante no Paraguai, Uruguai e China, onde recentemente lançou um suco de uva integral com aroma natural de café, desenvolvido especialmente para os consumidores locais. O produto chamou atenção do mercado interno, e a Aurora avalia disponibilizá-lo também no Brasil.
Metanol e efeito psicológico no consumidor
Questionado sobre o recente escândalo envolvendo bebidas adulteradas com metanol, o executivo afirmou que o episódio não afetou as vendas de vinhos. “O impacto foi psicológico. O consumidor entendeu que o problema estava nos destilados, enquanto vinho e cerveja são bebidas suplementadas, com controle e equilíbrio natural de álcool”, disse.
Segundo ele, a adulteração é facilmente perceptível em vinhos, pois altera o aroma e o paladar. “Qualquer adição estraga o produto imediatamente.”
Com a força de suas marcas e o lançamento de sucos com aroma de café e rótulos desalcoolizados, a cooperativa gaúcha busca sustentar o crescimento nos próximos anos, desta vez com a bênção e aprovação dos evangélicos.
