Energia renovável ou petróleo? Agenda ambiental ou foco na economia? Um dos Estados mais pobres e jovens do País, o Amapá, criado na Constituição de 1988, está em uma espécie de encruzilhada. Em entrevista ao BRAZIL ECONOMY, o governador Clécio Luís, do partido Solidariedade, afirma que é possível conciliar a agenda limpa (de descarbonização, bioeconomia, manejo florestal e energia renovável) com a agenda suja (de petróleo e mineração). Ele atribui a queda da insegurança alimentar a um choque de emprego e investimentos, sustenta que a proteção ambiental já feita dá lastro para atrair capital produtivo e propõe um fundo soberano para irrigar ciência aplicada, monitoramento territorial, infraestrutura e políticas para povos indígenas. Confira, a seguir:
Governador, o senhor utiliza muito a imagem de duas agendas, a limpa, de descarbonização e bioeconomia, e a suja, com destaque para o petróleo. Como o Amapá concilia esses vetores, aparentemente contraditórios?
Energia é questão de sobrevivência nacional. O mundo inteiro está demandando mais energia. A própria Inteligência Artificial eleva essa exigência. E, por isso, ninguém tirou o pé dos combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, a transição energética é inevitável e precisa sair do discurso para a prática. A diferença do Amapá é que nós fizemos o dever de casa. Somos um Estado da Amazônia com 97% de floresta tropical intacta e 73,5% do território legalmente protegido entre parques, reservas e outras categorias. Temos demarcação das terras indígenas sem conflito e elas permanecem preservadas. Com essa base, dá para afirmar: preservar e produzir podem andar juntos, desde que a produção seja regulada, monitorada e orientada por ciência.
O senhor costuma falar que não se vive de vento. Onde entra a agenda social nessa equação?
Entrei no governo em 2023 com 60% da população em insegurança alimentar. Hoje, estamos em 32%. Ainda é alto, mas houve queda forte. Por quê? Porque geramos emprego. Em dois anos e meio, abrimos 20 mil vagas com carteira assinada no setor privado, saindo de cerca de 80 mil vínculos para pouco mais de 100 mil. Isso é Caged, não é contratação pública. Ainda temos um dado duríssimo: 50% da população recebe Bolsa Família, com alguns dos 16 municípios chegando a 75%. Para mudar isso estruturalmente, a resposta tem que vir pela economia, com várias frentes, não uma aposta única.
Quais são essas frentes? A bioeconomia é eixo?
Bioeconomia é um guarda-chuva amplo. Vai do artesanato que se viabiliza com turismo até alimentos, cosméticos, nutracêuticos e fármacos. Criamos o Selo Amapá, que já certifica cerca de 1.300 produtos de origem bioeconômica. Há também madeira de manejo certificada, com rastreabilidade. Nosso objetivo é usar a biodiversidade de forma produtiva, gerando renda local e garantindo a floresta em pé. Isso não conflita com o petróleo. Pelo contrário: quero o petróleo como nova matriz econômica que financie ciência, monitoramento e infraestrutura, exatamente para manter nossos atributos ambientais. Como aconteceu na Noruega.
O modelo de referência que o senhor cita é a Noruega?
Sim, pelo princípio: renda petrolífera reinvestida para diversificar a economia e financiar o futuro. Queremos um fundo soberano do Amapá. Ele terá destinações claras, de apoio a povos indígenas, de monitoramento territorial e de pesquisa aplicada para resolver problemas concretos, além da infraestrutura. A legislação nacional tem ajustes a fazer. Hoje, quem começou a produzir antes e depois das mudanças legais tem regras distintas, mas a direção está dada. Não é maquiar gasto. É criar uma governança que vincule a renda do óleo a objetivos verificáveis.
Como responder ao argumento de que petróleo e mineração contaminam a bandeira socioambiental do Amapá?
Com regra, ciência e tecnologia. Mineração do século passado jogava rejeito no rio. Hoje isso não é mais permitido nem rentável. O sistema produtivo moderno é de circuito fechado, voltado a mineração de precisão. Aproveita insumos, reduz área, mitiga risco. Impacto territorial de uma mina é muito menor que o de atividades extensivas como pasto e grãos. E tem um ponto ignorado no debate: sem mineração, não há energia renovável. Não se fabrica placa solar, torre eólica, bateria ou rede de transmissão. Nossa linha é estimular apenas projetos com tecnologia de ponta e rastreabilidade. Estamos reativando a agenda mineral com responsabilidade. Liberamos uma área em Vila Nova após dois anos e meio de preparação e, com o Serviço Geológico do Brasil, planejamos 51 mil quilômetros lineares de levantamentos geofísicos para mapear com precisão.
Isso envolve as chamadas terras raras?
Também. Estamos iniciando estudos. O Amapá é um grande agregado mineral e precisa conhecer o próprio subsolo. Por enquanto, nossos projetos estão focados em metais como ouro, bauxita e minério de ferro.
O senhor mencionou manejo florestal como saída contra o desmatamento de necessidade. Por quê?
Porque pobreza e isolamento empurram a população para escolhas ruins. Se o pai de família está com fome, ele vai vender a árvore. Então, a alternativa é organizar o uso produtivo da floresta, com manejo sustentável, que regenera a mata e dá renda legal. Quando digo transformar dicotomia em dualidade, é isso. O meio ambiente não briga com o desenvolvimento. Induz o desenvolvimento, desde que haja zoneamento, licenciamento claro e segurança jurídica.
O Amapá está alinhado à política ambiental do governo federal?
Sim. Conversei com o presidente Lula, com os ministros de Minas e Energia e da Casa Civil e com várias lideranças do governo. Não vi ninguém, nem a ministra Marina Silva, dizer que é contra exploração de petróleo por princípio. O que existe é o compromisso com critérios técnicos. A palavra da ministra, e é por ela que me guio, é que o Brasil não abre mão do petróleo como atividade energética, mas vai tratar os processos de maneira técnica. É o que defendemos. O que pedimos aos órgãos é previsibilidade. O Ibama faz o seu papel, de licenciar, exigir planos, simular emergências. Já houve 25 simulações de acidentes com diferentes cenários e horários, todas batendo com o plano da Petrobras. Falta liberar a etapa de pesquisa na margem equatorial. Enquanto isso, continuamos a preparar o território.
O senhor fala muito em COP da implementação. O que significa na prática?
Significa sair da foto e ir para o plano executável, com zoneamento ecológico-econômico feito e publicado, como novo código ambiental objetivo, com capítulo de mudanças climáticas, com licenciamento que dá segurança para quem quer investir e para quem fiscaliza, e com um Plano Estadual de Recursos Hídricos mapeando lagos, igarapés, rios e nascentes. Saber vazão, sedimento, coloração, período de cheia e seca salva vidas em acidentes, organiza turismo e piscicultura, e evita conflito de uso. Sem água não há vida. Cuidar da água é a prioridade.
O senhor tem defendido o potencial renovável do Estado, especialmente solar. Como isso se traduz em números?
Estamos na linha do Equador, com sol o ano inteiro, 12 horas por dia em média. Um altíssimo fator de capacidade. Fizemos um exercício retirando áreas sensíveis (indígenas, UC, APP) para afastar polêmicas. Usando 3% das áreas produtivas, estimamos potencial para 54 GW, com 7%, cerca de 250 GW. Para comparar, o Brasil inteiro tem algo em torno de 250 GW de potência instalada total em todas as fontes. Itaipu são 14 GW. A maior hidrelétrica da China, 24 GW. Nosso parque hoje entrega algo próximo de 1 GW. Na prática, 900 e poucos MW. Ou seja, há espaço gigantesco para solar e eólica, com projetos majoritariamente privados. O papel do Estado é destravar licenças, linhas de transmissão e acesso a áreas.
Quais são os efeitos já percebidos com a expectativa do petróleo. Há sinais econômicos no território?
Sim. Hotelaria lotada em Oiapoque, aeródromo homologado para voo noturno e UTI aérea, coisas que há um ano não existia. Isso não é ‘PIB do petróleo’. É efeito de uma cadeia em organização de companhias, fornecedores e logística. Tenho recebido muitos empresários focados em bioeconomia e agronegócio, mas também em serviços para óleo e gás. Nosso PIB atual é R$ 22 bilhões.
Mas Ibama ainda não liberou a pesquisa sísmica e a atividade inicial. O senhor responsabiliza o órgão por atrasos?
Não. O órgão tem atribuição e faz testes rigorosos. Inclusive simulações noturnas e diurnas de vazamentos. O que peço é celeridade com técnica. Nosso discurso não é inflamado. É baseado em deveres de casa já entregues: proteção territorial, zoneamento, código ambiental e plano hídrico. Se queremos preservar de verdade, informação e governança são indispensáveis.
Antes, o garimpo ilegal era um grande problema ambiental real da Amazônia. Agora, parece que o problema é o petróleo. A preocupação mudou?
O garimpo ilegal se pulverizou na Amazônia. Muita gente foi empurrada da repressão em Roraima para outros pontos, caminhando por dentro da floresta. Se não há presença do Estado com alternativas econômicas e comando-controle inteligente, esse garimpo volta. É por isso que defendo mineração legal, de precisão e circuito fechado. Melhor organizar do que fingir que não existe e depois acordar com o rio contaminado.
O zoneamento ecológico-econômico do Amapá virou argumento-âncora do governo. Qual o ganho prático?
Segurança jurídica e ambiental. O zoneamento diz, com clareza, o que pode e o que não pode: onde é mineração, onde não é; onde se pode plantar espécies exóticas, onde não pode; onde não cabe grãos; quais são os microclimas, o relevo, a vegetação predominante. Isso vale para investidor, promotor, pesquisador, aluno do ensino médio. É um mapa para tomada de decisão e para reduzir conflito. Somado a um licenciamento objetivo, cria o ambiente para induzir desenvolvimento responsável.
O fundo soberano que o senhor propõe terá travas temáticas? Como impedir porto-escola (dinheiro da educação indo pra infraestrutura) e outras maquiagens?
Terá regras de alocação e métricas verificáveis. Uma fatia para povos indígenas (manutenção de modo de vida, saúde, educação), outra para monitoramento (satélite, drones, base de dados, auditoria), outra para pesquisa aplicada (não teoria no papel, mas solução prática remunerada por performance), outra para infraestrutura crítica (logística, saneamento, transmissão). O espírito é o oposto de maquiar gasto para cumprir percentual. Queremos um mecanismo anticíclico, transparente e revisável, que descole parte da renda do ciclo do óleo e cole em metas públicas de longo prazo.
E se o petróleo atrasar ou se o volume não for o esperado? O Estado fica refém?
Já disse e repito: não estamos reféns do petróleo. A queda da insegurança alimentar de 60% para 32% não foi por petróleo. Foi por emprego e atividade. Ontem, numa reunião com empresários chineses, não tocamos no assunto petróleo. Falamos de bioeconomia, alimentos, madeira certificada, energia renovável. O petróleo é uma alavanca a mais – e poderosa – para financiar a transição, proteger a floresta e quebrar o pior recado que o Brasil manda ao mundo hoje. Quem desmatou enriqueceu. Quem preservou ficou pobre. Queremos inverter essa mensagem.
O senhor costuma dizer que a Petrobras é a ‘NASA dos oceanos’. O que há por trás dessa metáfora?
É dimensão tecnológica e histórico de segurança em águas profundas. A Petrobras opera 31 navios-sonda. A segunda maior, algo como sete. É capacidade acumulada. Acidente zero? Não existe isso em atividade humana, mas o padrão de engenharia e contingência em águas profundas brasileiras é referência. Se temos tecnologia e governança, por que abrir mão de uma matriz econômica que pode financiar a bioeconomia, a manutenção de povos indígenas, o monitoramento e a infraestrutura?
Para fechar: qual é a sua ambição de legado? O senhor entrega o governo com pobreza zerada e petróleo produzindo?
Zerar pobreza não se promete de forma responsável, ainda mais partindo de um Estado em que metade da população recebe Bolsa Família. O que posso prometer, e estamos fazendo, é reduzir estruturalmente a pobreza com emprego, diversificação produtiva e políticas focalizadas. Sobre o petróleo, não vou chutar números. Tudo dependerá do tipo de óleo e do perfil de produção. O que garanto é que, com ou sem petróleo, o Amapá não volta ao isolamento, e a agenda de bioeconomia, de renováveis e de mineração sustentável vai seguir. Se o petróleo vier, melhor. Teremos um motor a combustão para acelerar a transição e pagar a manutenção daquilo que nos faz únicos: a floresta viva.