O preço da informação: é preciso combater o insider trading para proteger o mercado

De vantagem tolerada, ele passou a ser reconhecido como ilícito; de desvio de conduta ética, a crime. Isso não significa que deixou de existir

Fernando José da Costa*
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Imagens: Divulgação

"A informação pode ser considerada como o fundamento do próprio equilíbrio de mercado, exercendo um papel estrutural"

"A informação pode ser considerada como o fundamento do próprio equilíbrio de mercado, exercendo um papel estrutural"

Nenhum mercado é completamente justo. Mesmo sob os códigos mais estritos de conduta, a equidade plena é uma ilusão útil, mas há momentos em que a assimetria deixa de ser imperfeição inevitável e se torna mecanismo deliberado de apropriação. O insider trading habita essa fronteira, pois não se trata da desigualdade habitual, mas do uso consciente da vantagem de poucos sobre todos e, por isso mesmo, exige atenção estatal.

No Brasil, voltou-se a falar sobre o tema em razão de operações cambiais que teriam sido realizadas dias antes do anúncio de medidas tarifárias pelos Estados Unidos e que, diante do volume e do momento em que foram efetuadas, acionaram alertas. Assim, os órgãos de controle, com apoio do Supremo Tribunal Federal, decidiram investigar. Até aqui, o que se tem é uma suspeita, ainda sem desfecho, mas o caso basta para trazer à tona um debate que se repete em intervalos cada vez mais curtos.

Não é um fenômeno novo. A prática do insider trading atravessa décadas de bolsas, fusões, reestruturações societárias, reclassificações fiscais, decisões de política monetária. Sempre houve quem soubesse antes; o que mudou foi a forma como os sistemas passaram a tratar esse saber antecipado.

De vantagem tolerada, ele passou a ser reconhecido como ilícito; de desvio de conduta ética, a crime. Isso não significa que deixou de existir, mas, a partir do momento em que a lei o nomeia, ele perde a proteção da ambiguidade — ou deveria perder.

Nos últimos anos, episódios emblemáticos reacenderam o tema. Em 2023, o caso da Americanas revelou vendas significativas de ações por membros da diretoria pouco antes da divulgação do rombo contábil bilionário. No contexto global, em junho, o ex-CEO da Ontrak, Terren Peizer, foi condenado a três anos e meio de prisão por ter usado planos de negociação automatizada para se desfazer de ações enquanto escondia do mercado informações adversas. Ainda, a própria SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos) passou a investigar funcionários internos por possíveis vazamentos no sistema EDGAR, plataforma responsável por reunir e divulgar os documentos oficiais apresentados à SEC, como registros corporativos, demonstrações financeiras e declarações de participação societária.

Durante meu doutorado na Itália, aprofundei o estudo do insider trading a partir de uma comparação entre a legislação brasileira e italiana, concentrando-me em entender o que, em cada sistema, se considera como uso ilegítimo da informação e em que momento ela deixa de ser parte natural da atividade de mercado para se tornar instrumento de vantagem pessoal, bem como o que o direito penal, em cada modelo, faz quando isso acontece.

Nesse sentido, a informação pode ser considerada como o fundamento do próprio equilíbrio de mercado, exercendo um papel estrutural ao orientar decisões de investimento, ancorar expectativas e permitir que os sinais emitidos pelo mercado conservem algum grau de confiabilidade.

Assim, o tipo penal do insider trading, previsto na legislação italiana, criminaliza a conduta de quem, estando na posse de informação privilegiada, adquire, vende ou realiza outras transações, direta ou indiretamente, por conta própria ou de terceiros, sobre instrumentos financeiros utilizando tais informações. Também abarca aquele que comunica essas informações a terceiros fora do exercício normal do seu emprego, profissão, função ou cargo, ou fora dos limites de um estudo de mercado. Da mesma forma, pune-se quem recomenda ou induz terceiros, com base na mesma informação, à prática de operações.

A resposta penal é severa, como convém a um delito que atinge a confiança no mercado financeiro. A pena de reclusão varia de dois a doze anos, acompanhada de multa entre vinte mil euros e três milhões de euros e, nos casos em que a gravidade do fato, as qualidades pessoais do agente ou a dimensão do lucro obtido o justificarem, a multa pode ser aumentada até o triplo ou até o valor correspondente a dez vezes o produto do crime. Na Itália, a norma é pensada para impedir que a sanção se torne, ela própria, vazia diante da vantagem ilícita auferida.

No Brasil, embora o tipo penal tenha sido introduzido em 2001, a criminalização do uso indevido de informação privilegiada — definida como aquela relevante, ainda não divulgada ao mercado e apta a gerar vantagem indevida por meio de negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários — continua cercada por ambiguidade conceitual. A redação do artigo 27-D, da Lei nº 6.385/1976, ao carecer de critérios objetivos para a delimitação dos elementos normativos do tipo, impõe, na prática, uma dependência das normas infralegais expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), configurando típico exemplo de norma penal em branco, cuja completude se ancora em comandos administrativos para alcançar mínima efetividade.

Essa dependência regulatória enfraquece, de certo modo, a função simbólica do tipo. No lugar de um comando claro, o que se tem é um enunciado que oscila conforme a interpretação administrativa e, para um delito que se propõe a proteger a integridade do mercado de capitais, esse grau de ambiguidade é, no mínimo, disfuncional.

No campo das penas, a assimetria entre os dois sistemas é ainda mais evidente. A pena máxima prevista para a forma qualificada do crime, no Brasil, é de 6 anos e 8 meses de reclusão — praticamente a metade da pena cominada na legislação italiana.

Veja-se que a pena cominada ao crime de insider trading, quando praticado em sua forma simples, é de um a cinco anos de reclusão, mesma sanção prevista para o estelionato tradicional, por exemplo, uma figura clássica de delito patrimonial, voltada à proteção de interesses individualizados e cujos efeitos, em regra, se limitam à esfera da vítima diretamente induzida em erro.

Essa desproporcionalidade se revela ainda mais aguda quando se observa a pena prevista para o chamado estelionato eletrônico, cuja reclusão varia de quatro a oito anos, em razão do uso de artifícios digitais para indução ao erro. Ora, enquanto o estelionato eletrônico protege o patrimônio de vítimas determinadas contra fraudes digitais pontuais, o insider trading compromete a integridade do próprio mercado de capitais, erodindo a confiança pública na equidade das negociações e atingindo, por consequência, a coletividade de investidores e o próprio funcionamento do sistema financeiro. Ainda assim, paradoxalmente, sua resposta penal é menos severa.

Quanto à sanção pecuniária, embora a legislação brasileira preveja multa de até três vezes o valor da vantagem indevida, o modelo não contempla critérios de escalonamento que considerem a gravidade do fato, o perfil do agente ou o impacto econômico da conduta, como faz a legislação italiana.

O resultado é um tipo penal fragilizado, pouco dissuasivo e ainda incapaz de comunicar com clareza os limites entre a informação legítima e o abuso que compromete a confiança no mercado.

É importante lembrar, entretanto, que o direito penal sempre chega depois. Ele age quando a violação já produziu seus efeitos, quando a informação já gerou lucro, quando a confiança já foi comprometida e quando o mercado já absorveu a fraude. Isso não significa que a sanção penal deva ser descartada.

A discussão sobre o insider trading é, no fundo, uma disputa pelo tempo — o intervalo que separa quem já detém a informação de quem ainda será impactado por ela, quem já pode agir estrategicamente de quem permanece submetido à ignorância informacional. Quando o sistema, inclusive no plano legislativo, se revela leniente ou reage com atraso, o prejuízo é do próprio mercado — e não se pode esquecer que, quando o mercado deixa de confiar nas regras do jogo, ele joga contra elas.

*Fernando José da Costa é coordenador do curso de Direito da FAAP, presidente do LIDE Justiça, conselheiro do INAC e INECRIPTO, mestre e doutor em Direito Penal, foi secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, presidente da Fundação CASA e secretário municipal da Justiça da cidade de São Paulo, autor de vários livros e artigos jurídicos

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