Quem nunca viu um filme ou um desenho de ficção científica em que aparece uma sala futurista, toda branca, com acesso mega restrito e controlado, profissionais de jaleco branco falando coisas que 99,9% da população mundial sequer imagina? Para o mineiro Fernando Brandão, essa ficção é realidade. Esse é o ambiente de trabalho do cientista e pós-doutor em física brasileiro no Centro de Computação Quântica da AWS (Amazon Web Services), no Instituto de Tecnologia da Califórnia (EUA). Com carreira iniciada na academia e agora com atuação na indústria, ele comanda, ao lado do canadense Oskar Painter, a equipe que criou o novo chip de computação quântica Ocelot.
A novidade foi anunciada em fevereiro, com um artigo científico na publicação britânica Nature, uma das mais renomadas e tradicionais do mundo, em atividade desde 1869. O chip criado por Brandão e sua equipe — cujo número de integrantes sequer é divulgado por questões de segurança, mas que passa dos 100 que assinaram o artigo — usa arquitetura escalável para reduzir a correção de erros em até 90% e acelerar o desenvolvimento de aplicações de computação quântica do mundo real. É um passo importante para o desenvolvimento do computador quântico, que deve mudar a história da humanidade — mais até do que a famosa IA generativa que estamos vendo agora.
Confira a entrevista exclusiva de Fernando Brandão ao BRAZIL ECONOMY, em que o cientista discorre sobre quando o computador deve ficar pronto e o que ele poderá fazer:
BRAZIL ECONOMY – Quando falamos em computação quântica, imaginamos aquele laboratório que vemos em filmes de ficção científica. Como é seu ambiente de trabalho?
FERNANDO BRANDÃO – Tem parte que é igual, sim, porque o que a gente faz envolve várias abordagens que estão sendo tentadas para construir um computador quântico. Ninguém sabe qual vai dar certo — ou se alguma vai dar certo. Talvez várias deem certo, talvez nenhuma. Mas o que fazemos aqui, usando o que chamamos de qubits supercondutores, é uma área de microfabricação. A gente espera poder usar muito do que essa indústria desenvolveu — que é provavelmente a mais sofisticada dos últimos 50 anos — no nível da indústria de semicondutores, que não tem nada igual. Por isso, precisamos estar numa clean room. Mas também tem outras partes que não.
É um ambiente muito restrito?
Como todo projeto como esse, temos que proteger a propriedade intelectual. Tem que haver controle.
Quantas pessoas trabalham na sua equipe?
A gente não pode falar. Mas o time é grande. A publicação recente na Nature, mostrando nosso chip, tem mais de 100 autores. Mas somos muito mais trabalhando aqui. É um projeto grande, difícil de construir.
Como você se sente sendo um brasileiro conduzindo uma equipe gigante, multicultural, nos Estados Unidos, em um projeto tão importante?
Não sei se a palavra certa é “sortudo”. Mas sou grato por essa oportunidade. Temos um time muito bom, com gente de todas as áreas, bem diverso. Estamos sempre aprendendo, pois sempre está acontecendo algo novo. É uma oportunidade única, eu diria. E, para chegar ao objetivo que queremos, temos que estar no lugar certo, com os recursos certos, no momento certo, para tentar progredir essa tecnologia quântica e dar o salto que precisamos.
Tem muitos garotos no Brasil que querem seguir carreira na tecnologia, na ciência, e se espelham em você. Sente essa responsabilidade?
Eu não penso tanto nisso. Mas, de tempos em tempos, um brasileiro me escreve nas redes sociais e fala: “Ah, eu li uma reportagem sobre você, estou pensando nisso.” Eu gosto de receber esse tipo de mensagem, mas no dia a dia a gente acaba tendo muitos problemas para resolver, se envolve nos projetos que são difíceis.
É um projeto de muito longo prazo, não? São muitas etapas?
Nossa projeção é que só no começo dos anos 2030 a gente consiga chegar nesse computador quântico. Então, são muitos anos de desenvolvimento ainda. Temos foco, mas precisamos quebrar esse roadmap em passos mais tangíveis.
É uma estrada a ser trilhada, não é?
Os estudos de hoje são fundamentais para basear as conclusões de amanhã. Tem coisas que são lineares, outras não. Temos que fazer um planejamento. Há projetos que vamos precisar só daqui a cinco anos, por exemplo, mas temos que começar agora para desenvolver. É muito interessante trabalhar num projeto dessa escala e complexidade. Claro que só funciona porque é um time grande, com muita gente boa, com perspectivas e backgrounds diferentes.
Estamos vivenciando avanços da IA generativa que têm assustado muita gente. Com a computação quântica, é para ficar mais preocupado ainda?
(risos) A computação quântica é interessante. Se a gente fizer uma analogia com a IA, o que vemos hoje em dia é impressionante. Quais as tendências de evolução, onde ela vai nos levar, ninguém sabe. Se será criada uma IA mais inteligente que todos os humanos, ou se será apenas uma ferramenta muito útil que vai aumentar a produtividade… De qualquer forma, vai transformar a sociedade de maneira significativa nos próximos 5 ou 10 anos. A computação quântica é um pouco mais tangível, no sentido de que já sabemos algumas aplicações que justificariam construir esse computador. Algumas relacionadas à segurança cibernética, como a criptografia, por exemplo. Esses computadores conseguiriam quebrar protocolos de criptografia que todo mundo usa hoje em dia. Então, do ponto de vista de segurança nacional, muitos governos têm interesse em desenvolver essa tecnologia.
Por qual razão?
E também há as questões de entender melhor a física — o que parece acadêmico, mas está tudo relacionado. Nanotecnologia, ciência de materiais… Nessas áreas, em que queremos criar novas tecnologias, muito depende de entender o mundo microscópico: como um novo material ou uma molécula vai atuar, como um remédio, por exemplo. Tudo isso envolve modelar a mecânica quântica. Mas isso é muito difícil na prática, então usamos métodos aproximados. No passado, o laser é um exemplo que exigiu entender a mecânica quântica da luz para ser inventado. A máquina de ressonância magnética também. Sempre que entendemos a mecânica quântica de um sistema físico, novas tecnologias são criadas. Mas há um limite, porque alguns sistemas quânticos se tornam muito complexos. Com os computadores atuais, não conseguimos simular. Mas um computador quântico conseguiria. Em vez de bits, usamos qubits — e, para alguns problemas, isso gera um aceleramento exponencial na resolução.
Mas dá para dizer que vamos ter um mundo melhor com o computador quântico?
Tomara que sim. Mas a gente pode fazer essa mesma pergunta sobre qualquer tecnologia. Ela sempre leva a um mundo melhor? A resposta é: deveria, se os seres humanos souberem como usar da maneira certa.
É exagero falar em releitura da física tradicional a partir da computação quântica?
A mecânica quântica com certeza foi uma revolução na física tradicional, mas começou há 100 anos. Mostrou que a física do mundo microscópico é muito diferente daquela que aprendemos na escola, com Leibniz e Newton. Essa física clássica é só uma aproximação da física verdadeira, que se manifesta totalmente no mundo microscópico.
Quais os últimos avanços que você viu?
Richard Feynman, que foi físico aqui no Caltech e ganhou o Nobel pela teoria quântica do eletromagnetismo, foi o primeiro a ligar os pontos e dizer: “Temos computadores, que são importantes, mas o mundo, no nível mais fundamental, é quântico. Então, por que não fazer computadores baseados na física quântica?” Um supercomputador de hoje levaria o tempo da idade do universo para resolver um problema que um computador quântico resolveria em minutos.
E quais são essas aplicações? Para onde vamos?
Algumas a gente já conhece. Mas identificar novas aplicações é um dos grandes desafios da área. Pelos próximos 10 anos, o principal desafio é construir um hardware quântico funcional — e depois identificar cada vez mais aplicações para ele.
Os chips já estão aí…
Mas ainda são protótipos. Hoje, tudo é codificado em 0 e 1. O computador atual faz trilhões dessas operações até ter um erro. O que precisamos agora é lidar com esses erros em um nível muito maior, com muito mais qubits, e com controle mais preciso do experimento para rodar algoritmos interessantes. Vai ser necessário escalonar os sistemas quânticos com correção de erro para alcançar um uso prático. A nova arquitetura que criamos é mais eficiente nesse sentido, o que reduz a necessidade de escala para tornar o computador útil.
Considera que já chegaram a qual percentual do projeto?
É difícil dizer, porque não começamos do zero. Viemos de décadas de desenvolvimento teórico e experimental. Desde que surgiu a ideia, há 40 anos, acredito que já passamos da metade do caminho.
A humanidade tem um fascínio por corrida espacial. A computação quântica vai ajudar nisso?
Tem uma proposta interessante: usar telescópios conectados em diferentes partes da Terra com embaralhamento quântico entre eles. Esse tipo de correlação permitiria criar um telescópio com resolução muito maior do que temos hoje e entender melhor o espaço.
Você veio da academia, estudou bastante, e agora está na indústria. Acha que falta sinergia entre os dois mundos?
Não. Essa interação entre academia e indústria é fundamental na computação quântica e vai continuar sendo. No meu caso, trabalho quase todo o tempo nesse projeto, mas ainda sou professor no Caltech. Faço parte de projetos tanto no prédio da Amazon quanto no campus, porque sabemos que essa sinergia é essencial para avançar.
Você tem acompanhado o avanço da tecnologia no Brasil? Como vê o País nesse setor?
O Brasil tem pesquisadores muito bons em computação quântica. A dificuldade, como em outros países, é que construir um computador quântico exige investimentos muito altos. Por isso, quem lidera são empresas de tecnologia, como a Amazon.
E na tecnologia em geral?
O Brasil tem gente muito boa em IA, produzindo trabalhos relevantes. Mas, em termos de construir os modelos de IA, são poucos os lugares que fazem isso.
Com tudo o que você está vendo e vivendo na tecnologia, como acredita que será o mundo daqui a 10 anos?
Nossa, é muito difícil prever. Talvez o mundo mude mais na próxima década do que mudou nos últimos 20 anos. Já tivemos grandes mudanças com o smartphone, a conexão… E talvez venham transformações ainda maiores. Mas para termos uma sociedade melhor, vai ser necessário que governos, instituições e a humanidade façam um esforço coletivo para usar a tecnologia da melhor forma, com mais acesso, mais democratização. É fácil imaginar cenários em que isso não acontece. Por isso, é um desafio coletivo.