Denis Balaguer é diretor de Inovação e do Wavespace da EY para a América Latina. Com mais de 25 anos de experiência em estruturação e liderança de laboratórios de inovação e digitais, também possui credenciais acadêmicas em áreas relevantes e multidisciplinares. Pela Harvard Business School, é formado em liderança empresarial. Possui mestrado em engenharia aeronáutica pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), é pós-graduado em jornalismo científico pela Universidade de Taubaté — onde também se formou engenheiro mecânico — e é doutor em ciências tecnológicas pela Universidade Estadual de Campinas.
Há quase 10 anos na EY, uma das Big Four que oferecem serviços de auditoria, consultoria, análise fiscal e tributária no mundo, o executivo comanda um setor que tem o desafio de estar sempre três anos à frente, pensando em futuras soluções para o mercado. Com toda essa bagagem intelectual e profissional, Denis Balaguer analisa o atual momento da conjuntura econômica do País no âmbito do uso da tecnologia. Acompanhe os principais trechos da entrevista exclusiva ao BRAZIL ECONOMY:
BRAZIL ECONOMY – Como tem visto a evolução tecnológica nos últimos anos?
DENIS BALAGUER – Especialmente nos últimos dois anos, vestimos a camisa da GenAI em tudo que fazemos. Desde a transformação interna — em que treinamos 4.000 pessoas dentro da firma em Generative AI, passando por treinamento básico até engenharia de prompt — até hackathons para descobrir casos de uso e medir seus impactos no dia a dia das pessoas. Estamos acompanhando a adoção de ferramentas de mercado e também trabalhando junto aos clientes para fazer jornadas de GenAI. Dezenas de letramentos foram realizados com boards, C-levels ou áreas técnicas, além de clientes de clientes, nos quais ajudamos a entender a tecnologia, desenhar a estratégia, criar frameworks de aplicação e, depois, junto com a área de negócios, transformar isso em projetos.
O que observa de tendências e demandas do mercado em geral neste momento?
Existem coisas que são fáceis de enxergar e outras que são quase impossíveis. O que quero dizer com isso? É que certamente haverá cada vez mais integração de IAs com agentes. Estamos caminhando mais rápido do que percebemos para ter IAs mais sofisticadas do ponto de vista cognitivo e mais baratas. Hoje, por algumas mensurações, já avançamos além da tradicional Lei de Moore (observação feita por Gordon Moore, em 1965, que prevê que o número de transistores em um microchip dobra a cada dois anos). Por outro lado, apesar dessa sofisticação, da maior escala e do menor custo, nossa primeira intuição sobre o impacto no negócio tende a ser incremental: um novo Office, um plug-in a mais no trabalho. Mas há um horizonte que não conseguimos enxergar, pois estamos diante de uma mudança paradigmática no funcionamento das empresas. Todas as revoluções industriais trouxeram uma subversão completa do modelo operacional e do modelo de negócios das empresas estabelecidas. Num futuro de cinco anos, teremos configurações industriais completamente diferentes das que temos hoje — seja na maneira como operam internamente, como interagem entre si ou com os consumidores. Talvez essa seja a peça em que mais estamos colocando energia hoje: entender o que será uma empresa daqui a cinco anos, com uma hierarquia funcional diferente, processos de negócios que não se parecem com os atuais, mas sim modelos e estruturas completamente distintos.
E o que será a EY daqui a cinco anos?
Somos uma empresa de serviços profissionais, nosso modelo de negócio é baseado em vender conhecimento, apoiado em pessoas. Como vamos sustentar esse modelo em um mundo onde, embora eu não acredite que o conhecimento estará democratizado e gratuito para todos — o que provavelmente nunca acontecerá — haverá uma inteligência não humana importante no jogo? Como redesenho meu modelo de entrega incorporando uma inteligência não humana, que possui uma capacidade cognitiva igual ou superior à de alguns dos meus melhores consultores? Não custa lembrar que, no ano passado, tivemos um Prêmio Nobel de Química concedido não à pessoa que descobriu a proteína, mas àquela que criou o software que descobriu a proteína. Então, o prêmio deveria ter sido dado ao software. Veremos, assim, uma reinvenção radical de dentro para fora.
Mas essa mudança que está por vir nem todas as empresas conseguirão acompanhar. Como isso deve afetar o mercado e a economia?
A história econômica oferece uma lição pessimista ou otimista, dependendo do ângulo de análise. Se olharmos em macro, do começo da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, até hoje, vivemos a época de maior glória da humanidade. Entre o ano 0 e o ano 1700, o PIB per capita praticamente não mudou. Estávamos presos no que os economistas chamam de armadilha malthusiana: para crescer a produção, era preciso crescer os fatores produtivos — ou seja, a população. Porém, mais pessoas significavam mais bocas para alimentar, mantendo-se um equilíbrio com teto baixo, impossibilitando o crescimento. O que a inovação tecnológica acoplada à Revolução Industrial trouxe foi crescimento exponencial. Pela primeira vez, desacoplamos da armadilha malthusiana e conseguimos aumentar a produção econômica sem crescer proporcionalmente os fatores produtivos, graças à tecnologia. A inovação nos salvou dessa armadilha.
Mas neste novo momento, muitas empresas ficarão pelo caminho?
Quando olhamos o micro, as empresas que lideraram a primeira Revolução Industrial não eram as estabelecidas: essas, em geral, morreram. O mesmo ocorreu na segunda Revolução Industrial: quem liderou foram empresas que não tinham o self cost, o custo afundado do legado, e puderam inovar de maneira quase aberta, sem o trade-off da responsabilidade. Quem é o inovador disruptivo, no sentido estrito, não presta contas a ninguém, exceto a si mesmo e, eventualmente, aos clientes que conquista. Por isso, inova muito rapidamente. Já nós, como empresa tradicional, tendemos a ser conservadores, de maneira adequada e correta, pois temos um legado e uma responsabilidade diferentes. Mas isso é cruel. Sou muito otimista: acredito que entraremos numa Era de Ouro da inovação tecnológica e do crescimento econômico. A IA é muito semelhante, em alguns pontos, às general purpose technologies (tecnologias de propósito geral) que tivemos no passado, como o vapor e a eletricidade. Porém, tem uma característica singular: o fato de existir IA gera uma IA ainda melhor. Ela possui um acoplamento positivo, uma capacidade de se auto criar. Estamos, portanto, prestes a viver um momento muito positivo de crescimento, inovação e riqueza material — e também humana. Mas a questão é: nas mãos de quem? Quem colherá esses louros? Esse é o grande desafio para nós, empresas estabelecidas. Isso é o que me tira o sono todos os dias.
Com várias camadas de maturidade empresarial, a IA, como tecnologia diferenciada, é mais democrática e pode mudar o jogo para todos?
Ela é, sim, mais democrática, mas impõe desafios às grandes e médias empresas. E aqui precisamos fazer um recorte específico: o Brasil se destaca negativamente nesse aspecto. Quando analisamos empresas médias nos EUA e na Europa, elas possuem uma qualidade de gestão média-alta. Já no Brasil, a qualidade média de gestão é baixa, pouco sofisticada, em grande parte pela qualidade da nossa mão de obra. Nossos empreendedores de empresas médias são heróis, self-made, muitos dos quais não tiveram oportunidade de estudar e, dadas as características do nosso mercado e da nossa dinâmica econômica, nunca conseguiram contratar uma força de gestão profissional. Assim, uma empresa média no Brasil, com 20 a 50 funcionários, terá muita dificuldade de capturar os ganhos da IA. Nos EUA e na Europa, uma empresa de 50 a 100 funcionários terá uma oportunidade de ouro: acesso, a baixo custo, a tecnologias altamente sofisticadas, que permitem automatizar processos, fazer mais rápido com mais qualidade ou realizar atividades antes impossíveis, pela falta de capacidade de investimento e de pessoal. Estou falando desde controles, elaboração de relatórios de compliance, demonstrações financeiras, boas análises de custos até inovação. Mas isso depende de uma capacidade de gestão instalada — e temo que, no Brasil, as empresas realmente médias estejam hoje apenas “matando um leão por dia”, sem as competências críticas mínimas para aproveitar essas oportunidades.
E essa faixa de empresas é muito importante. São as maiores empregadoras do Brasil…
Esse é um dos grandes desafios que temos como País: como dar um salto usando a tecnologia? Como ajudar a transformar a nossa camada média da indústria? Para mim, isso passa, certamente, por inovação. As métricas são muito claras. Acompanho há muitos anos a pesquisa do IBGE de inovação (Pintec). E, miseravelmente, pelo terceiro ano seguido, em meio à maior revolução tecnológica em décadas — talvez em um século — a quantidade de empresas inovadoras no Brasil caiu: atingiu 64,6% das médias e grandes empresas em 2023, percentual inferior aos 68,1% registrados em 2022 e aos 70,5% de 2021. Quando olhamos para inovação tecnológica — empresas que fazem pesquisa, desenvolvimento e adoção de GenAI — estamos falando de um número na casa dos 30% a 40%. É muito baixo, concentrado num grupo pequeno de grandes empresas. Isso também se reflete na absorção de mão de obra. Não conseguiremos fazer uma absorção adequada de tecnologia se não tivermos recursos humanos com domínio tecnológico nessas empresas. Se observarmos, a quantidade de mestres e doutores empregados na indústria é menor ou igual à quantidade formada anualmente em ciência, tecnologia e engenharia. Ou seja, formamos mais profissionais do que empregamos. Não é um problema de oferta — temos esses profissionais — mas de demanda. Nossa economia hoje não tem capacidade de demandar essa mão de obra técnica para fazer a revolução que nossa indústria e economia precisam.
Esses profissionais têm ido para onde? Para a academia?
A academia não consegue absorver todos. Muitos ficam quase numa ocupação à parte, com bolsas de pós-doutorado ou em fundações que absorvem parte dessa demanda, além dos institutos de pesquisa que temos. Uma parte vai para fora do País, infelizmente, e outra acaba fazendo outra coisa da vida. Com sorte, alguns trabalham com problemas sofisticados e relevantes em empresas como a nossa. Hoje, na EY, na minha equipe, temos doutores em astrofísica. Ótimo: estão aplicando conhecimento altamente sofisticado para problemas de negócios relevantes, em clientes relevantes. Mas quantos astrofísicos estão hoje em áreas nobres? A demanda não está lá.
Estamos tratando mal nosso corpo de intelecto?
Esse é um dos desafios que temos como País. Tratamos muito mal. Nosso Sistema Nacional de Inovação não conseguiu azeitar esse mecanismo de oferta e demanda de mão de obra — que é, talvez, uma das forças motrizes quando olhamos os ecossistemas de inovação de outros países. Funciona muito bem nos EUA, na Europa, na China…
Estamos perdendo nossa vocação?
Temos vocações naturais que não estão sendo bem exploradas. Em um congresso da indústria de mineração, em 2023, em Belém (PA), eu disse que, para mim, o primeiro laboratório de P&D de IA das gigantes da tecnologia deveria estar lá: IA aplicada à mineração, IA aplicada a nature-based solutions. Como usamos as áreas em que o Brasil tem vantagens absolutas — não apenas comparativas — como mineração, energia, natureza, agro? Como usar a tecnologia não para melhorar percentualmente, mas para dar saltos exponenciais? Talvez falte articulação, independentemente do nível de protagonismo do governo, para que o sistema econômico coloque foco nessas áreas. Curiosamente, a única indústria de alta intensidade tecnológica em que o Brasil tem vantagem comparativa internacional é a aeronáutica. E o Brasil não tinha nenhum motivo natural para ter essa indústria. Quando o brigadeiro Montenegro começou a falar em indústria aeronáutica, no pós-Segunda Guerra Mundial, o Brasil não fabricava nem bicicleta. Ainda assim, fizemos e vencemos. Por que não fazemos isso no agro? Na mineração? Na energia? Por que não conseguimos diversificar, intensificar a cadeia de valor — para frente, para trás e para os lados — ao redor desses grandes setores da economia brasileira? Temos algumas ilhas, com trabalhos brilhantes. Mas a chave passa por articulação. Temos oportunidades, mas desperdiçamos capacidades cruciais para o País.