Sob a gestão de Donald Trump, marcada por uma postura protecionista e pela reconfiguração de acordos comerciais tradicionais, a economia mundial enfrenta desafios como tensões geopolíticas, guerras tarifárias e instabilidade nos fluxos de comércio internacional. Esse cenário de incerteza tem levado blocos econômicos a buscarem alternativas para fortalecer suas relações comerciais e reduzir a dependência de grandes potências. Nesse contexto, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia ganha novo impulso, visto como uma oportunidade estratégica para ampliar mercados, diversificar parcerias e garantir maior previsibilidade nas trocas comerciais. Brasil e França desempenham papéis centrais e, muitas vezes, antagônicos nas negociações do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia.
Em entrevista exclusiva ao BRAZIL ECONOMY, Pedro Antonio Gouvea Vieira Almeida e Silva, presidente da Câmara de Comércio França Brasil (CCIFB), avalia que, de um lado, o Brasil — maior economia do Mercosul — tem se posicionado como um dos principais defensores do acordo, enxergando nele uma oportunidade para ampliar suas exportações agrícolas, atrair investimentos e se integrar de forma mais competitiva às cadeias globais de valor. O país tem atuado para flexibilizar regras e alinhar políticas com os padrões europeus, buscando destravar impasses técnicos e políticos.
Por outro lado, a França tem adotado uma postura mais cautelosa, muitas vezes crítica, especialmente no que diz respeito a questões ambientais. O governo francês, sob forte pressão de agricultores e ambientalistas, teme que o acordo favoreça produtos agrícolas sul-americanos em detrimento da produção local, além de questionar os compromissos ambientais do Mercosul — com foco especial nas políticas de preservação da Amazônia.
Esse embate entre os interesses econômicos do Brasil e as exigências socioambientais da França tem sido um dos principais obstáculos para a conclusão definitiva do acordo, exigindo uma complexa diplomacia entre as partes para encontrar um equilíbrio sustentável e mutuamente benéfico. Acompanhe, a seguir, sua entrevista:
Como o sr. enxerga essa conjuntura global que parece tão peculiar, com protecionismo e um possível novo formato de globalização?
Vejo, em primeiro lugar, um momento de grande incerteza. E o personagem central dessa incerteza hoje é, sem dúvida, Donald Trump. Diferente da sua primeira eleição, onde era uma surpresa, agora ele retorna com um forte apoio popular e uma agenda que busca quebrar alguns pilares geopolíticos estabelecidos desde o pós-Segunda Guerra.
O sr. mencionou esses pilares e um certo multilateralismo que existia. Acha que essa ordem está realmente ameaçada com a volta de Trump?
Ameaçada, sim. Os Estados Unidos já não são a potência hegemônica que foram. Militarmente, continuam avassaladores, mas em termos de moeda e influência, o cenário mudou. China e Índia emergem como players incontornáveis, e a Europa, apesar de ser subestimada por alguns, ainda é um mercado fortíssimo. A grande questão é a incerteza dos próximos passos e essa abordagem meio errática de “erro e acerto” que temos visto.
E essa imprevisibilidade, como o sr. acha que afeta a previsibilidade que o ser humano tanto busca, tanto no âmbito geopolítico quanto em nossas vidas?
Exatamente. Nós gostamos de saber onde estamos pisando, e hoje essa clareza se esvaiu. Não só pelas questões geopolíticas, mas pelas disrupções tecnológicas, como a inteligência artificial, que transformam nossas relações pessoais e profissionais numa velocidade impressionante. Há um desconforto geral, uma busca por entender como esses ajustes serão feitos.
Mudando um pouco o foco para a Europa, essa crise com Trump não expôs uma dependência excessiva do continente em relação aos Estados Unidos, especialmente em questões de segurança como a Ucrânia e a OTAN?
Concordo plenamente. A Europa, de certa forma, tornou-se altamente dependente dos Estados Unidos para sua defesa. A OTAN, que era uma barreira ao avanço russo, parece rachada. A Europa agora se vê numa posição de maior protagonismo, mas também de maior incerteza, tendo que se unir para resolver seus próprios problemas e os de seus vizinhos.
E essa necessidade de maior união na Europa, você acha que as divergências internas entre os países, como vemos em relação à Ucrânia, podem dificultar esse processo?
Sem dúvida. A Europa, concebida inicialmente para ser um bloco menor, hoje com 27 estados e chefes de estado, enfrenta desafios na gestão dessa diversidade. Há um Banco Central único, mas não há uma soberania unificada. As diferenças de idiomas e interesses tornam a unidade uma questão complexa, embora ninguém hoje tenha coragem de falar abertamente em sair do bloco.
Em relação aos conflitos globais, como Ucrânia e Oriente Médio, qual a sua leitura sobre o papel dos Estados Unidos sob uma possível nova administração Trump?
Apesar das declarações de Trump sobre a OTAN, acredito que os Estados Unidos não têm interesse em grandes conflitos diretos, apesar de seu poderio militar. Historicamente, após a Segunda Guerra, eles não invadiram nações, focando mais na defesa e em influenciar. As tensões atuais, como a questão de Taiwan e a disputa por recursos, fazem parte desse dinamismo global, mas uma invasão direta por parte dos EUA seria surpreendente.
Qual a sua avaliação sobre comércio, especificamente o acordo Mercosul-União Europeia, que historicamente enfrentou resistência da França. Acha que a postura de Macron pode estar mudando nesse novo cenário global?
Acredito que sim. Paradoxalmente, Trump está ajudando a América Latina e o Brasil, sem querer, ao gerar instabilidade em outras regiões. O Brasil, por exemplo, já exporta mais soja para a China do que para os EUA. Nesse contexto, é muito provável que a França esteja reconsiderando sua posição em relação ao acordo Mercosul-União Europeia. As razões anteriores eram o protecionismo ao agro francês, mas acredito que o acordo seria benéfico para ambos os lados.
E quando poderíamos ver esse acordo se concretizar e trazer benefícios tangíveis para os dois blocos?
É difícil prever um prazo exato. Lula tem uma visita à França em junho e certamente abordará o tema com Macron. Apesar da posição soberana da França, acredito que, no balanço geral, o acordo é vantajoso para ambos os blocos.
Qual o sentimento das empresas brasileiras e francesas em relação a esse possível acordo de livre comércio?
O sentimento é positivo. As empresas veem como uma oportunidade de acesso a mercados maiores. O Brasil, com seus 220 milhões de habitantes, não é um mercado desprezível, assim como a Europa com seus 500 milhões. Já há um fluxo significativo de investimentos entre os dois, e o acordo tende a intensificar isso. O Brasil precisa da Europa, e a Europa, em certa medida, também depende do Brasil. Há um dinamismo em curso, e acredito que o acordo, com os ajustes necessários, será uma realidade.